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    João Pereira Coutinho

    Ensaio sobre as cegueiras

    18/05/2015 02h00

    Perguntei em tempos por que motivo as universidades de elite não discriminavam negativamente alunos asiáticos. Pensamento lógico: se as cotas pretendem mais negros nas universidades, onde eles estão sub-representados, por que não limitar o mérito que alunos asiáticos costumam exibir com abundância?

    Perguntas proféticas. Informa o "The Wall Street Journal" que a Universidade de Harvard enfrenta queixas judiciais por discriminação de (bons) alunos asiáticos. Escreve o jornal que, no momento da candidatura, é exigido a um chinês, a um japonês ou a um sul-coreano mais 140 pontos do que a um aluno branco; mais 270 pontos do que a um aluno hispânico; e mais 450 pontos do que a um aluno negro.

    O interessante da notícia é que ela revela o pensamento igualitário e multiculturalista no seu melhor. Ou no seu pior –e a diferença entre asiáticos e negros é um exemplo arrepiante.

    Primeiro, porque ao exigir aos alunos asiáticos mais 450 pontos do que a um aluno negro "normal", o que está implícito no cálculo é que um aluno negro é sempre um caso de atraso pedagógico a exigir proteção infantil.

    Não sei o que pensarão os negros da atitude paternalista. Mas se Harvard realmente a pratica, é como se estivesse a dizer: "Não se preocupe, você é negro, ninguém espera nada de especial da sua parte."

    Mas o gesto é aberrante ao enviar o sinal contrário: não vale a pena estudar ou trabalhar se você nasceu na cultura errada. As origens asiáticas praticamente decidem o seu destino.

    Se isso é punitivo para os bons alunos asiáticos, é duplamente punitivo para alunos asiáticos simplesmente "regulares", obrigados a terem mais 800 ou 900 pontos do que um aluno negro "regular".

    A injustiça do esquema fura os olhos de qualquer um. Só não fura os olhos de quem já padece de cegueira mental incurável.

    *

    Você, leitor, é homem interessado no futuro do Brasil. Você, leitor, costuma comprar livros na Livraria da Folha. Você, leitor, deve procurar urgentemente "Pare de Acreditar no Governo - Por que os Brasileiros não Confiam nos Políticos e Amam o Estado", livro de Bruno Garschagen.

    Verdade: escrevi o prefácio da obra e, como dizem os "idiotas da objectividade", sou "suspeito" na matéria.

    Mas se isso é crime, cometo o delito com um sorriso nos lábios. O livro de Garschagen procura analisar o maior paradoxo político do Brasil democrático. Que está expresso no próprio subtítulo: os brasileiros desconfiam dos políticos e, sejamos sinceros, têm uma certa repugnância pela espécie.

    Mas, ao mesmo tempo, eles querem mais e mais Estado –ou seja, e por outras palavras, querem mais e mais políticos a tomar conta dos interesses públicos. Como explicar essa "dissonância cognitiva"?

    Garschagen vai às origens da tradição patrimonialista brasileira para encontrar, claro, a tradição patrimonialista portuguesa. Mas não só: com uma escrita divertida, informada e polêmica, o livro é sobretudo uma história do país –da independência no século 19 aos governos PT do século 21– e da paixão pelo Estado que palpita no coração de governantes e governados.

    A conclusão do autor é simples e fulminante: se você, leitor, acredita que os políticos não são anjos, então talvez seja altura de também não acreditar que o Estado é um jardim celestial. "Touché."

    *

    Anos atrás, assisti a um documentário de Douglas Spurlock intitulado "Super Size Me". O filme pretendia denunciar os malefícios da "junk food". E, como mestre de cerimônias, tínhamos Spurlock comendo no McDonald's de manhã à noite, durante um mês.

    No final da aventura, o temerário Spurlock tinha engordado vários quilos –e a missão estava cumprida. "Junk food" era veneno. "Junk food" engordava e danificava o organismo.

    Fiquei aturdido. Sempre pensei que "junk food" era a forma mais eficaz de emagrecer. Mas ali estava a prova existencial de que o lixo, afinal de contas, era mesmo lixo.

    Claro que, no meio de tanta mediocridade, Douglas Spurlock não formulava a questão fundamental: quando as pessoas comem lixo, a culpa é do lixeiro –ou das pessoas que o procuram?

    A pergunta não era formulada, nem respondida, por um motivo básico: a nossa sociedade infantil gosta das suas liberdades. Mas não gosta das responsabilidades que lhes estão associadas. Melhor culpar os outros pelas suas próprias imbecilidades.

    Por isso aplaudo o texto de Drauzio Varela ("Reclama pro bispo", 2/5/2015) publicado nesta Folha. Diz o colunista que os brasileiros não param de engordar: 51% dos adultos já estão acima do peso recomendado. E, entre as crianças, um terço da tribo entre os 5 e os 9 anos já passou dos limites. Conclusão?

    A sociedade brasileira "americaniza-se" (30% da população dos Estados Unidos é obesa) e alguns dirão que é hora de declarar guerra ao McDonald's, aos doces, aos refrigerantes e a tudo que arruína o corpo da população.

    Drauzio Varella afirma que, antes de procurar culpados "lá fora", é preciso encontrá-los "cá dentro": a loucura reinante começa na cabeça de cada um. No descontrolo da gula, no desprezo pelas consequências e no repúdio da responsabilidade pessoal.

    De fato, não há pílulas milagrosas para tantos santos do pau oco.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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