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    João Pereira Coutinho

    Os horrores de Michael Löwy

    09/06/2015 02h00

    A distinção entre "esquerda" e "direita" nasceu há dois séculos e meio. Com a Revolução Francesa e os lugares que os três Estados ocuparam relativamente ao rei na Assembleia Constituinte.

    À esquerda do monarca, sentou-se o povo. À direita, a aristocracia e o clero. A revolução de 1789, em suma, atribuiu à esquerda o desafio à ordem estabelecida; e, à direita, a conservação dessa mesma ordem.

    Tudo isso é esquemático, claro. E não faltam autores, na história do pensamento político, para quem a divisão é posterior.

    Steven Lukes, por exemplo, é um deles: a divisão entre "esquerda" e "direita" –ou, para usar os termos de 1820, entre "liberais" e "ultras" –só foi verdadeiramente sentida depois do fim da era napoleônica. Ou então só aconteceu realmente em 1848, quando o sufrágio masculino importou o "cisma ideológico" para a política de massas.

    Seja como for, Steven Lukes, ele próprio um homem de esquerda, alerta para as simplificações grosseiras que essas divisões sempre transportam: da mesma forma que existem várias esquerdas (moderadas, revolucionárias, social-democratas etc.), também existem várias direitas. Exemplos?

    O reacionarismo de Joseph de Maistre ou Louis de Bonald; a hostilidade de ambos ao individualismo (e, surpresa das surpresas, ao capitalismo) não pode ser confundida com uma direita "liberal", seja ela conservadora ou não, que passou a marcar o ritmo das sociedades democráticas em que vivemos.

    Na sua vocação antiautoritária (seja contra o alegado "direito divino dos reis" dos séculos 17 e 18 ou contra os "direitos divinos" de criminosos como Hitler ou Stálin no século 20); na sua defesa constitucional de que uma comunidade política é regida por leis, não pelo capricho de um homem; no seu individualismo filosófico (a afirmação de que os indivíduos têm direitos que não podem ser esmagados pelo coletivo); e até na sua tolerância perante diferentes concepções do bem (Alan Ryan, no recente "On Politics", considera mesmo a tolerância dos liberais o valor mais importante da tribo), confundir esta direita com os seus primos bastardos só é possível por ignorância ou má-fé.

    É por isso que pasmo com as declarações de Michael Löwy a esta Folha. O sociólogo paulista, radicado em Paris, mostra preocupação com o "modernismo reacionário" da nova "onda conservadora" no Brasil.

    Esta direita (que ele, com apreciável rigor, às vezes chama de "extrema-direita") tem nostalgia pela ditadura militar; revela intolerância com minorias sexuais; atinge o orgasmo com a violência policial; e, atenção pelotão de fuzilamento!, é sempre favorável ao sistema capitalista.

    Fato: não sou um especialista profundo sobre a "onda conservadora" que corre pelo Brasil. Mas como escrevi um livro sobre o conservadorismo e como conheço bem os livros recentes que navegam nas mesmas águas, confesso não ter encontrado ainda uma pequena amostra dos horrores que tanto angustiam Michael Löwy.

    Aliás, apelando para a sua solidariedade acadêmica, eu gostaria que ele me dissesse onde está a nostalgia pela ditadura; o culto da violência; e o ódio demencial às minorias.

    Estranhamente, aquilo que encontro nos meus pares é uma direita cansada do abuso político e da corrupção econômica. E que procura resgatar para o Brasil os valores "liberais" clássicos –repito: individualismo, constitucionalismo, antiautoritarismo e tolerância– que são moeda corrente na cidade, no país e no continente onde, ironia das ironias, o ilustre sociólogo marxista escolheu para morar.

    Num ponto, porém, Michael Löwy tem inteira razão: a "extrema-direita conservadora" (favor não rir), que sempre foi inimiga feroz do capitalismo, parece que agora fez as pazes com ele. Talvez porque entendeu que, historicamente falando, não existe ainda um sistema melhor para produzir riqueza e distribui-la com a mesma eficácia.

    Mas se Michael Löwy tiver no bolso esse sistema, de preferência com resultados empíricos comprovados, o meu único pedido é que ele não se retraia e partilhe com o pessoal.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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