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    João Pereira Coutinho

    Joaquim Nabuco, meu irmão

    11/08/2015 02h00

    Passei meus últimos meses na companhia de Joaquim Nabuco. É uma boa companhia. E, já agora, um bom conselho: jovens leitores brasileiros, não me perguntem mais por leituras "obrigatórias" ou "fundamentais".

    Primeiro, os meus gostos variam consoante os dias. E, depois, para que ler autores estrangeiros quando existe na pátria uma das mentes mais brilhantes e elegantes que o pensamento político jamais produziu?

    Disse "elegantes". Reafirmo. Essa, aliás, foi a primeira irmandade que estabeleci com "Quincas, o Belo": o homem não era apenas um dândi dos trópicos a deambular pela Europa. Era um soberbo escritor –e ler "Minha Formação" ou a monumental biografia do pai, "Um Estadista do Império", representa, por si só, um curso de estilo que deveria ser obrigatório para qualquer aspirante ao "métier".

    Exemplos? Vários. Mas, sem pretensão de ser original, bastaria o capítulo "Massangana" de "Minha Formação" ("Massangana" era o nome do engenho pernambucano onde Nabuco viveu até aos 8 anos de idade com os padrinhos) para gravar em mármore o nome do autor na história da lusa língua.

    A descrição feita por Nabuco do jovem negro que lhe abraça os pés, pedindo-lhe que a madrinha o adotasse porque o senhor o castigava com brutalidade, remete a literatura antiescravista norte-americana (como "A Cabana do Pai Tomás") para uma nota de pé de página.

    E o nosso deslumbramento continua com a descrição de Nabuco da visita ao cemitério dos escravos, alguns anos depois de ter deixado Massangana. Edgar Allan Poe não faria melhor: em pinceladas fantasmagóricas, Nabuco relembra os nomes das ossadas que pisa, como se escutasse o chamamento dos mortos para que devotasse a vida à causa abolicionista. Quem lê estas páginas, não esquece. E não esquece por quê?

    Eis a segunda irmandade: porque Nabuco tem o talento, raríssimo em política, de transformar "intuições" estéticas em juízos éticos.

    Muito se escreveu sobre as influências "britânicas" que Nabuco sofreu. Biógrafos (como a excelente Angela Alonso) ou estudiosos (como Marco Aurélio Nogueira, um autor de formação marxista que publicou o mais importante estudo sobre Nabuco que conheço) dedicam páginas importantes à tradição "liberal" inglesa.

    Admito que Nabuco tenha encontrado nessa tradição alguns fundamentos teóricos para a sua conduta política (já lá irei). Mas aposto o meu dedo (mindinho) em como a principal influência inglesa está numa certa "forma de estar" que precede qualquer teorização.

    Aliás, por falar em "teorias", é precisamente a influência inglesa que leva Nabuco a desprezá-las –e a ver no pai, erradamente (creio), essa mesma disposição antiteórica.

    Quando Nabuco fala da "impressão aristocrática da vida" que Londres lhe imprimiu, ele reporta-se a algo de intangível, sensorial, quase sensual –como, por exemplo, o paradoxo da cidade ser a capital de um império e, ao mesmo tempo, uma urbe silenciosa (grande observação, quando pensamos nisso, só acessível a um "poeta").

    Digo mais: Nabuco abraça a causa abolicionista pelos mesmos motivos "estéticos". A escravidão era uma "mancha" que "desfigurava" toda a existência –social, econômica, interpessoal– dessa grande tela chamada Brasil.

    E as memórias de infância, com o escravo fugitivo ou a visita ao cemitério, dão o "tom" para a grande ópera abolicionista –com Nabuco no papel de "tenor" principal.

    Isso significa que o "liberalismo" de Nabuco não é para ser levado a sério? Longe disso. A admiração que ele tinha por Walter Bagehot (e a sua "The English Constitution") é genuína: Bagehot explicava que o essencial do sistema inglês era o "governo de gabinete", ou seja, o fato do Executivo ser uma emanação do Legislativo.

    Nabuco desejava que essa fosse a evolução política do Segundo Reinado: a possibilidade de o Brasil ser uma monarquia parlamentar como existia na Inglaterra. E, além disso, concordo com Marco Aurélio Nogueira quando ele afirma que, para Nabuco, só seria possível pensar o "liberalismo" no país a partir do momento em que os filhos do Império pudessem ser finalmente "livres".

    Mas os fundamentos ideológicos de Nabuco são posteriores, e não anteriores, à sua dimensão estética.

    Quem diria: a escravidão no Brasil também foi derrotada pela sensibilidade e imaginação de um artista.

    *

    O colunista sai em férias a partir da publicação desta coluna, retornando em 7 de setembro

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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