• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 20:32:39 -03
    João Pereira Coutinho

    Atropelamento na China tem serviço completo

    07/09/2015 02h03

    A vida é uma aprendizagem constante. Leio na virtual "Slate" um texto de Geofrrey Sant sobre os atropelamentos na China. Segundo parece, é comum que uma pessoa atropelada na China corra sérios riscos de morrer no processo. Mesmo que sobreviva ao primeiro impacto.

    Porque depois do primeiro vem o segundo. E depois do segundo vem o terceiro. E depois do terceiro, se for necessário, vem o quarto —e assim sucessivamente, até o infeliz estar colado ao asfalto como se fosse uma camisa engomada. Só então o motorista chama a polícia para reportar o infeliz acontecimento.

    Como explicar essa macabra situação, mil vezes filmada pelas câmeras de segurança, em que o carro anda para a frente e para trás em busca do último suspiro do desgraçado?

    Simples: com a legislação chinesa e as indemnizações em jogo. Se atropelamos e matamos alguém na China, pagamos entre US$ 30 mil e US$ 50 mil. Razoável.

    Se, pelo contrário, temos o azar de atropelar e estropiar, corremos sérios riscos de passar o resto da vida a pagar cuidados médicos ao acidentado que podem ascender aos milhões. Questão de matemática: entre atropelar (com serviço completo) ou atropelar (com serviço incompleto), melhor escolher a primeira opção.

    Depois, em tribunal, é sempre possível argumentar que a vítima foi confundida com um vulgar objecto —uma caixa no meio da estrada, por exemplo— e pagar a conta mais modesta. Moral da história?

    Pessoalmente, duas. A primeira, imediata, é relembrar essa divisão política entre aqueles que têm uma visão optimista sobre a natureza humana —e os outros, como eu, que sempre olharam para a espécie Homo Sapiens com as lentes do pessimismo antropológico.

    Os otimistas que discordam do meu pessimismo podem sempre viajar até à China e experimentar um atropelamento por lá. Quem sabe? Talvez exista mesmo um bom selvagem dentro de nós, pronto para derramar sobre os outros, não a maquinaria de um automóvel —mas o "leite da ternura humana".

    Mas existe uma segunda moral. Ainda me lembro de um colega universitário que me dizia que o futuro estava na China. Tese dele: Pequim aprendeu a lição com a ruína da antiga União Soviética. Entendeu que era preciso enriquecer, sim, mas sem abertura política.

    E era possível, acrescentava ele, ter um regime de partido único e uma economia capitalista, ou próxima disso.

    Discordei. Duplamente. Primeiro, o "milagre chinês" é baseado em números oficiais que são fabricados por uma ditadura. Ditaduras não costumam ter relações pacíficas com a verdade.

    Por outro lado, não é possível ter liberdade econômica sem liberdade política. Cedo ou tarde, uma classe média mais afluente vai exigir outro tipo de luxos. Como, por exemplo, participar politicamente no destino do país. Se isso não acontecer na China —primeiro, liberdade económica; depois, liberdade política— será caso único na história.

    Mas é possível que existam sempre excepções e —quem sabe?— talvez o modelo chinês acabe conquistando o mundo. Com a força da sua economia. E, já agora, com o humanismo do seus motoristas.

    Quando esse dia chegar, faço minhas as palavras de uma socióloga portuguesa que há uns anos horrorizou o auditório luso quando afirmou na televisão que preferia morrer a ter um mundo dominado por Pequim.

    Com a devida vénia, eu também prefiro o caixão. E se for por atropelamento, melhor ainda: US$ 50 mil dão sempre jeito aos meus herdeiros.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024