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    João Pereira Coutinho

    Vestir com os olhos

    19/10/2015 09h00

    Menos é mais. Eis a minha filosofia. Por exemplo, deixei de assistir a peças de teatro em São Paulo. Quando frequentava uma delas, havia sempre alguém em palco completamente pelado. Melhor: pelado e urinando.

    Não sou um puritano, juro. Mas a despesa era inútil quando posso ver tudo isso nos chuveiros da minha academia de ginástica. Quando o teatro paulistano tiver atores vestidos em palco, eu voltarei a ser cliente. Promessa.

    E quem fala em teatro, fala na gloriosa "Playboy". Cresci com ela. Já escrevi a respeito ("Uma herança", 22/5/2012). A "Playboy" foi uma escola anatômica e, não brinco, intelectual: suas entrevistas e ensaios completavam a educação de um adolescente esfomeado.

    Mas depois chegou a internet, com milhares de sites onde a nudez total era apenas um aperitivo. Quem julga que isso é um estímulo para um homem hétero, engana-se. Com a vulgarização, a nudez torna-se uma espécie de vestimenta uniforme.

    "Ok, são seios."

    "Ok, é uma bunda."

    "Ok, é uma vagina."

    Um horizonte saturado de nudez e sexo transforma qualquer consumidor em mero ginecologista. Então nós suspiramos: "Ah, como seria bom umas calcinhas. Ah, como seria bom um sutiã. E um vestido, hmm, meu Deus, não aguento tanta luxúria." Escrevo essas linhas e sinto que algo acontece na parte inferior do meu corpo.

    Foi assim que comecei a consumir outras revistas: a "Vogue", a "Harper's Bazaar", a "Cosmopolitan". Meu tédio sexual dissipou-se. Mulheres vestidas, bem vestidas, e o pensamento correndo livre: como seria despi-las? Como seria desabotoar essa blusa, depois encontrar um sutiã e finalmente removê-lo?

    E as saias: que beleza! O que existirá debaixo delas? Meias ligas? Minhas loucuras atingiram um ponto tal que, no Verão, quando as mulheres passam por mim semi-peladas, o desafio não estava em despi-las com os olhos. Estava, pelo contrário, em vesti-las.

    A esse respeito, confesso aqui que só por milagre minhas conquistas passadas não me mataram no quarto. Por causa das minhas exigências íntimas. A donzela surgia e começava imediatamente o striptease. Brochava. E dizia: "Meu bem, não leve a mal. Mas você pode ficar vestida só um pouquinho mais?"

    Elas concordavam, com esgares de preocupação. E quando, minutos depois, o striptease recomeçava, eu brochava novamente. Dizia: "Meu bem, não leve a mal. Mas posso ser eu a fazer isso?" Muitas fugiram com acusações irreproduzíveis nesta Folha, um jornal de família.

    Contas feitas, é preciso dizer o óbvio: entendo a decisão da "Playboy" em abandonar as mulheres peladas. Especialistas diversos dizem que a decisão era inevitável: como competir com a internet, onde existem milhares (ou serão milhões?) de filmes que transformam o "Kama Sutra" em literatura infantil? Não é possível: com seis décadas de existência, a revista que vendia 5,5 milhões de cópias na década de 1970, hoje anda pelas 700 mil.

    Não nego que a explicação seja válida. O próprio Hugh Hefner considera as fotos "passé". Mas também não nego que existam incontáveis homens para quem as fotos da "Playboy" viraram uma espécie de visita ao açougue. Carnes, carnes, carnes. Nenhum mistério. Nenhum espaço para a imaginação, o mais poderoso dos afrodisíacos. Uma pessoa começava como leitor carnívoro e, com a repetição, terminava vegetariano.

    Agora, a "Playboy" pretende fotos "insinuantes" e artigos de qualidade. Sobre os artigos, Ruy Castro já disse o essencial: a revista "pode voltar a ser adulta e ressuscitar" ("Coelho na cartola", 16/10/2015).

    Sobre as fotos, seria uma ironia feliz que a publicação que despiu as mulheres nos últimos 63 anos começasse agora a vesti-las. Peça a peça e, por favor, página após página.

    *

    P.S. - Amanhã, às 18h30, estarei na Livraria Cultura do Conjunto Nacional da av. Paulista para um encontro com os leitores do "Vamos ao que Interessa" (Três Estrelas), a mais recente coletânea de crônicas. Prometo ir vestido.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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