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    João Pereira Coutinho

    Morte e vida narcisista

    08/12/2015 02h00

    Manhã de sábado. Desperto. Café, telefonemas, e-mails. Visita ao banheiro. E quando passo os olhos pelas "redes sociais", um amigo melômano presta as suas homenagens a Roberto Carlos. O título do texto gela o meu pobre e estremunhado corpo: "O Rei morreu! Viva o Rei!".

    De rastos, levo as mãos à cabeça. Leio os comentários ao texto dele: todos, ou quase, elogiam o cantor e relembram os temas favoritos –"Parei na Contramão", "As Curvas da Estrada de Santos" e até "As Baleias", que Deus lhes perdoe.

    Desligo o laptop e, ao som de "Quero que Vá Tudo pro Inferno", começo a escrever à mão a minha apologia robertiana.

    Viajo até Cachoeiro de Itapemirim, lá no Espírito Santo, onde Roberto Carlos viveu a infância. Ainda sobre a infância, relembro o brutal acidente que o marcou para toda a vida. E relembro também "O Divã", tema que sempre me comoveu com seus versos simples e brutais ("Na partida para o futuro/ Eu ainda era puro" etc.), uma das poucas canções em que Roberto relata esse funesto episódio sem nunca ser literal.

    Depois viajo para São Paulo, para o iê-iê-iê da jovem guarda e mergulho finalmente nos anos gloriosos (fim da década de 1960, toda a década de 1970). No aparelho de música já rola "Detalhes".

    A minha sentença, em texto absurdamente longo e sentimental, é que o Brasil perdera o seu maior artista –alguém que soube integrar na música brasileira os "ares de todos os tempos". Do rock ao soul, sem esquecer as baladas que eu próprio aprendi a dedilhar ao piano ("Cama e Mesa", sempre "Cama e Mesa"), Roberto Carlos refletia e personificava a história cultural da música popular do país como nenhum outro.

    Com o texto pronto, ligo o laptop e só então visito os jornais de um Brasil obviamente enlutado. Primeiro, esta Folha. Nada. Depois, o "Estadão". Nada. Em desespero de causa, espreito "O Globo", "Veja", até um jornal do Espírito Santo. Nada, nada, nada.

    Primeiro pensamento: será que o Brasil enlouqueceu? Segundo pensamento: será que eu enlouqueci?

    O meu amigo melômano não atende o telefone. O Google responde por ele: falsas notícias sobre a morte de Roberto Carlos já são uma tradição. O Rei está sempre vivo! Viva o Rei!

    Rasgo o texto com a fúria dos otários. Depois, mais aliviado, sinto uma estranha inveja de Roberto Carlos. Notícias mentirosas sobre a nossa morte podem ser um prato indigesto, concedo. Mas, aqui entre nós, é o desejo reprimido de qualquer narcisista que se preze.

    Por mim falo. E, aposto, por alguns leitores que leem estas linhas. O único funeral a que não podemos fugir é o nosso. Mas, honestamente, de que vale estar entre quatro tábuas quando não é possível testemunhar (e registrar) quem são os verdadeiros amigos e os verdadeiros canalhas, as lágrimas sentidas e os sorrisos clandestinos?

    Sem falar do resto: quem prestará homenagens públicas –e por escrito? E quem, por escrito, dirá do morto aquilo que não teve coragem de lhe dizer em vida? Mais triste que a nossa morte é não podermos assistir a tudo da arquibancada.

    Por um preço razoável, todas as pessoas deveriam poder optar, não apenas por um –mas por dois funerais. O primeiro, só para avaliar a sua cotação na praça. E o segundo, para enterrar finalmente a carcaça. Quantas famílias, quantas amizades e até quantas inimizades não seriam repensadas?

    Como nos filmes de Ingmar Bergman, imagino o meu falso velório. Alguns amigos contam piadas em um canto –e um deles pergunta: "Quando se janta?". O outro responde: "Isso não é falta de respeito?". O primeiro discorda: "Se ele já não pode comer, comemos nós por ele". Todos riem.

    Mas imagino antigas namoradas, com lágrimas reprimidas, murmurando entre as flores: "Você me levou ao hospício, mas deixará muitas saudades". E também dois ou três inimigos que, para surpresa minha, estariam junto ao caixão, no silêncio respeitoso de quem perdeu um leal adversário de armas.

    Esse seria o momento em que o caixão se abriria em explosão digna de um show e, ao som de Roberto Carlos, o falso defunto cantaria: "E pra começar/ Eu só vou gostar/ De quem gosta de mim"!

    Os desmaios na sala fariam parte do espetáculo.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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