• Colunistas

    Tuesday, 07-May-2024 04:35:11 -03
    João Pereira Coutinho

    Está bem assim

    28/12/2015 02h00

    A crônica é uma menina para qualquer serviço. Existem exemplos para todos os gostos. George Ade (1866-1944), um autor brilhante (e esquecido), transformou o gênero em retratos literariamente perfeitos da vida citadina (no caso, Chicago em finais do século 19, inícios do 20).

    H.L. Mencken (1880-1956), pelo contrário, usou a crônica para fazer o que mais gostava: autopsiar políticos (vivos), escritores (vivos), clérigos (vivos) e a humanidade semi-viva que ele contemplava em volta.

    O inglês Auberon Waugh (1939-2007), o mais genial de todos no século 20, poderia pertencer à mesma escola do americano Mencken. Mas Waugh acrescentou um tempero só possível na pátria de Swift: a paródia ficcional, usando personagens reais para construir um mundo paralelo e demencial, onde existem audiências com a rainha ou conversas secretas com primeiros-ministros. Os seus diários para a "Private Eye" serão um dia lidos como hoje lemos Oscar Wilde ou Max Beerbohm.

    Esses são os cronistas que "olham para fora". Depois existem aqueles que preferem a paisagem interior e que elegem a sua "persona" (não confundir com a sua pessoa) como matéria-prima da crônica. Entre os mortos, Jeffrey Bernard é a referência. Entre os vivos, David Sedaris.

    O meu colega e conterrâneo Pedro Mexia (n. 1972), que publicou no Brasil o excelente "Queria Mais é Que Chovesse" (Tinta da China, 190 págs.), faz parte da segunda equipa e, ironicamente, partilha com Bernard e Sedaris o essencial: o gosto pela escrita na "primeira pessoa" e a autodepreciação como manual de sobrevivência. Mas sobrevivência a quê?

    Basicamente, a tudo. À implacável passagem dos anos. Às memórias juvenis que persistem em perseguir-nos (sobretudo quando há "jeunes fills en fleurs" no cardápio). Ao excesso de adiposidade e ao défice de propinquidades. Ao cabelo que desaparece. Às olheiras que não desaparecem. A uma voz de Pato Donald que ficou encravada entre a adolescência e a idade adulta.

    Mas também às loucuras próprias do mundo literário (Mexia é um dos melhores poetas portugueses da sua geração) e da vida citadina. Os loucos que aparecem em debates e querem também debater. Os taxistas que dissertam alarvemente sobre "ciganos" ou "pretos". Os "blind dates" que são literalmente "encontros para cegos". E as visitas a clubes de striptease onde os homens olham "para maminhas de silicone como quem segue o Tour de France" (uma metáfora para a eternidade).

    À primeira vista, a Coletânea de crônicas é "leve" e "divertida", para usar duas palavras mentecaptas. Mas só à primeira vista. Por baixo do humor fino do autor, há um rio de melancolia que transborda em cada página. E que deságua em dois textos –os dois melhores textos– da antologia.

    O primeiro ("Gabriela, Uma Memória Olímpica") é dedicado a uma atleta suíça que nos Jogos Olímpicos de 1984 terminou a maratona em 37º lugar, depois de um esforço desumano e quando todos a aconselhavam a desistir. É nessa Gabriela que Mexia pensa. Sobretudo quando o verbo "desistir" se intromete nos seus dias como um demônio ladino.

    O segundo ("Quarenta") é, como o título indica, uma meditação aos 40. E qualquer palavra minha ficaria aquém das palavras do próprio. Que rezam assim:

    "Aos 40 anos, não compreendo esse medo de ficar sozinho que me inquietava ainda aos 33. Ficamos sozinhos quando somos exigentes. Ficamos sozinhos quando não mentimos. Ficamos sozinhos quando defendemos as nossas convicções. É um preço que estou disposto a pagar. E há, digamos, dez pessoas de quem gosto, dez pessoas sobre quem não me enganei, e dez pessoas é um mundo."

    Não sei servirá de consolação. Mas para alguém, como eu, que fará 40 em breve, o meu mundo também não excede duas mãos cheias. E, como diria Mexia, também está bem assim.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024