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    João Pereira Coutinho

    Não parar é morrer

    07/03/2016 02h03

    Almoço com um amigo de infância. Conversa solta. A certa altura, ele olha para o relógio e diz, com a preocupação típica dos pecadores: "Já deveria estar trabalhando."

    Informação: passou meia-hora e o prato principal ainda está sob processo mandibular. Eu rio, digo qualquer coisa como "mas tu não és o chefe?", e ele responde: "Mesmo assim."

    Não é caso único. Em todos os contextos, e sob todos os pretextos, encontro gente que se sente culpada por não estar trabalhando. Como se um momento de pausa fosse uma blasfêmia contra a religião do escritório. Não falo apenas de funcionários que dependem da benevolência do diretor. Falo de seres soberanos sobre o seu próprio tempo e sobre a sua própria ocupação, que em teoria já têm carreira e patrimônio para uma ociosidade ocasional.

    Os casos mais aberrantes acontecem com colegas de ofício, para quem as pausas deveriam ser o primeiro mandamento das suas artes.

    Nem eles se salvam. Quando os encontro para dois dedos de conversa, lá vem a angústia do livro/ensaio/artigo que eles não estão a escrever.

    De fato: quem disse que vivemos na sociedade disciplinar do sr. Foucault? Hoje, a punição vem de dentro. Somos nós que vigiamos e punimos qualquer manifestação de liberdade interior.

    Eis, no fundo, a tese de "A Sociedade do Cansaço", um breve e brilhante ensaio de Byung-Chul Han. O título começa por enunciar um diagnóstico: cada época histórica tem as suas doenças características. Se a humanidade já passou pelas épocas bacteriana e viral, o nosso tempo define-se pela doença neuronal.

    Diferenças? Para Han, as duas primeiras definiam-se pela ameaça daquilo que é "estranho" e "exterior" —a bactéria, o vírus que agredia o organismo. A violência neuronal —presente nas depressões, na ansiedade, nas neuroses etc— é algo que nasce em nós e contra nós.

    Pela submissão voluntária ao único imperativo que restou nas sociedades atomizadas e dessacralizadas do Ocidente —o "imperativo do trabalho"— Byung-Chul Han é primoroso ao escrever como o homem pós-moderno "transporta sobre as costas o seu próprio campo de trabalho forçado".

    Isso é visível até nas pequenas coisas: podemos considerar a capacidade de "multitasking" uma forma de evolução. Algumas empresas, nos seus anúncios de emprego, valorizam a acrobacia.

    Mas essa hiperatividade, que permite realizar várias tarefas ao mesmo tempo, é uma regressão: só os animais selvagens, por motivos de sobrevivência, são obrigados a várias atividades simultâneas —busca de alimentos, alerta permanente para outros predadores etc. O fato de nos comportarmos como animais não deveria ser motivo para festejar.

    E, obviamente, não é. Deixo ficar as consequências físicas e psíquicas da "sociedade do cansaço" para os especialistas respectivos.

    Fico pelas consequências filosóficas: que espécie de cultura esperamos produzir quando privamos o próprio ato criativo da sua semente mais necessária —esse tempo para não-fazer; esse "dom da escuta" que o "animal de trabalho" considera um luxo e, como se vê em alguns amigos, uma fonte de culpa?

    Seria fácil desprezar o "dom da escuta" se a vertigem da produção contínua oferecesse também a produção contínua de obras valiosas. Mas a vertigem, como defende acertadamente Byung-Chul Han, limita-se a reproduzir e acelerar o que existe.

    É por isso que a celebração mentecapta de que "nada é impossível" se converte rapidamente no seu oposto: na ideia de que "nada é possível", o princípio da "infarto" neuronal.

    George Orwell dizia que é preciso uma luta constante para ver o que existe bem na frente do nosso nariz. "A Sociedade do Cansaço" tem essa capacidade. No fundo, a capacidade que as bestas de carga não têm tempo para usar.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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