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    João Pereira Coutinho

    Amanhecer com Donald Trump

    10/05/2016 02h00

    Donald Trump prepara-se para ser o candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos, e o meu telefone toca a horas impróprias (antes das 11 da manhã). É uma jornalista –competente, experiente, educada– que pretende saber a minha opinião sobre o apocalipse em curso.

    Ainda com sono, respondo um "pode perguntar o que quiser", e ela começa a perguntar o que quer.

    – Como você explica o sucesso de Trump?

    – Bom –suspiro eu–, penso que esse fenômeno se deve ao fato de os americanos, em geral, e de os republicanos, em particular, terem votado nele.

    Silêncio do outro lado da linha. Passam-se cinco segundos, e a jovem continua:

    – Mas como explicar essa preferência por Donald Trump?

    Já em posição vertical, ou pelo menos oblíqua, dou um gole no café frio da última noite:

    – Bom –respondo eu–, creio que votaram nele porque se identificaram com as coisas que ele diz.

    Novo silêncio do outro lado da linha. Os cinco segundos de pausa são agora dez:

    – Mas como você explica o fato de alguém se identificar com as coisas que ele diz?

    – Bom –continuo eu, esticando as pernas–, um populista não é necessariamente um débil mental. Ele estuda primeiro os temas que causam medo no eleitorado. Depois, promete respostas simples para todos eles.

    – Quer dar exemplos? –pergunta ela, ansiosa.

    – Bom –respondo eu–, você já escreveu textos contra a globalização, certo?

    – Certo –responde ela, orgulhosa.

    – Bom –concluo eu–, Donald Trump provavelmente concordaria com esses textos. A retórica de Trump promete fechar fronteiras –a mexicanos, muçulmanos, produtores chineses– para fazer da América um país isolado e grande novamente. É a velha nostalgia da extrema-direita e da extrema-esquerda de que uma "sociedade fechada" está protegida do "mundo" –sejam imigrantes, seja o capitalismo, sejam os extraterrestres, seja qualquer coisa.

    – E você acredita nisso?

    – Bom –respondo eu, abrindo as cortinas do quarto–, eu não. Mas há americanos que acreditam –a classe média trabalhadora que empobreceu nos últimos anos e teme que a competição internacional seja fatal para ela. Nunca devemos subestimar a força dos temerosos e ressentidos. Será deles o reino da Terra.

    Com tom exasperado, ela acusa:

    – Você não tem grande respeito pela democracia, certo?

    – Bom –defendo-me eu, entrando no banheiro–, você é que não tem. Eu aceito o resultado das prévias com espírito democrático.

    Nova pausa do outro lado da linha. Quinze segundos de limbo.

    – E que conselho você daria a Hillary Clinton para vencer as eleições?

    – Bom –respondo eu, escovando os dentes–, creio que Hillary não precisa de conselhos. Ela, ao contrário dos outros republicanos, leu Maquiavel na idade certa. O importante é que ela use a mentira e a dissimulação para conquistar os americanos com as palavras que eles querem escutar. Como normalmente acontece em qualquer eleição democrática, ganha quem mentir melhor. E, nesse quesito, estamos salvos: ninguém mente melhor do que Hillary.

    – Mas você não acha que nós, enquanto jornalistas, devemos denunciar essas mentiras e manipulações?

    – Bom –respondo eu, entrando na ducha–, obviamente que sim. Mas não foi isso que eu vi nessas prévias americanas. Como escrevia o "The Wall Street Journal" recentemente, parece que o jornalismo "respeitável", em busca do melhor ibope, deu mais espaço a Donald Trump do que a qualquer outro candidato. Antigamente, o jornalismo de referência servia para separar o lixo da qualidade. Hoje, o jornalismo acredita que tem de seguir a selva das "redes sociais", amplificando as proclamações incendiárias de qualquer palhaço, porque isso é economicamente rentável. Deu no que deu.

    Risos do outro lado da linha. Nervosos.

    – Só falta você dizer que foram os jornalistas que elegeram Trump.

    – Bom –concluo eu–, se falta dizer isso, então pode escrever: foram os jornalistas que também elegeram Donald Trump.

    A chamada é desligada sem um adeus sequer. Suspeito que a entrevista não será publicada.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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