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    João Pereira Coutinho

    Pregar partidas

    17/05/2016 02h00

    Sempre tive um fetiche por últimas palavras. Você entende: pensamentos ou confissões que os ilustres moribundos deixaram para memória futura.

    A curiosidade é filosófica e pessoal. Filosófica, porque o confronto com a morte é a única certeza da nossa condição. E pessoal porque, narcisista como sou, penso há anos no meu legado verbal –e terminal.

    Bem sei, bem sei: amigos mentalmente sãos aconselham-me a não perder tempo com o assunto. E afirmam, com intocável lógica, que o mais provável é eu soltar um grito vexatório e dizer coisas infames como "ai, mãezinha!" ou "ai, Jesus!". Mas eu, incorrigível e vaidoso, persisto na minha quimera.

    Felizmente, não sou caso único: Eric Grounds, no seu delicioso "The Bedside Book of Final Words", vai arrolando as frases célebres das mais célebres criaturas. Tudo com uma descrição breve sobre o momento que antecede as sentenças –e as partidas.

    A delícia do livro está logo no título: ter como obra de cabeceira uma coleção de frases que foram proferidas no leito derradeiro é a melhor forma de rir alto da Donzela Negra.

    Existe de tudo. Frases lendárias. Frases lendárias (mas duvidosas). Frases terrivelmente pretensiosas. E terrivelmente desinteressantes.

    Os mesmos amigos que me falam em "ai, mãezinha!" ou "ai, Jesus!" reproduzem, no fundo, os gritos efeminados de Muammar Gaddafi ("Não me matem! Não me matem!") ou de Hugo Chávez ("Eu não quero morrer! Eu não quero morrer!"). Francamente: quem deseja deixar para a posteridade uma vergonha dessas? Mil vezes a proclamação do 1º Duque de Valência, Ramón María Narváez ("No puedo perdonar a mis enemigos, porque los he matado a todos").

    Verdade que muitos dos ditos célebres são mais ficção que realidade. O filósofo Voltaire aproximava-se do fim. E, impelido a renunciar ao diabo, terá respondido: "Não é hora de fazer novos inimigos".

    O mesmo serve para Oscar Wilde no seu quarto de hotel em Paris: "Ou eu, ou as cortinas: um de nós tem de ir". Ambas são proclamações apócrifas, avisa Eric Grounds. Mas eu prefiro essas duas mentiras a qualquer verdade.

    Aliás, a principal lição que levamos do livro é que o humor não é apenas uma forma de salvação em vida. Ele é sobretudo útil quando a escuridão se aproxima.

    Naturalmente que é preciso distinguir o humor "consciente" (digamos assim) do humor "involuntário". Nesse último quesito, é delicioso saber que J.M. Barrie, o celebrado autor de "Peter Pan", terá deixado como últimas palavras um singelo "não consigo dormir". Ou que o ator Douglas Fairbanks terá gritado "nunca me senti tão bem!" antes de cair para o lado.

    Mas, entre os "involuntários", confesso certo fascínio pelo escritor Paul Claudel ("Doutor, acha que foi da salsicha?"); Hegel para o seu discípulo dileto ("Só tu me compreendeste... E mesmo assim percebeste tudo errado"); e até Hitler, Deus me perdoe, que terá declarado no bunker, antes de rebentar com os miolos: "Ser bom não compensa".

    Mas os meus aplausos vão para aqueles que mantiveram propositadamente um sentido de humor refinado. Groucho Marx, sem surpresa, ocupa o primeiro lugar do pódio. Quando a enfermeira se aproximou do agonizante Groucho só para ver se ele tinha temperatura, o humorista respondeu em seu último fôlego: "Não seja tonta –toda gente tem temperatura".

    Mais difícil de engolir é a história de William Palmer, famoso médico inglês que, no século 19, tinha o hábito desagradável de envenenar os doentes. Condenado à morte, foi levado ao cadafalso. E, no momento em que pisava as tábuas, perguntou ao carrasco: "Tem certeza de que isto é seguro?".

    Termino o livro de Eric Grounds a levitar de prazer. E, depois, com uma página em branco na minha frente, imagino uma sentença que faça justiça ao momento final. Escrevo, reescrevo. Apago.

    E então concluo que talvez os meus amigos tenham razão: a morte é um fato sem interesse ou grandeza pela sua óbvia banalidade. "Quando chegar a hora, improvisa", digo a mim próprio, antes de desligar a luz.

    Mas depois volto a pensar nos meus amigos e, com um sorriso gentil, deixo apenas duas frases na página:

    "Vou indo na frente, pessoal. Não demorem muito".

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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