Barack Obama visita Hiroshima na próxima sexta-feira (27), e o mundo suspende a respiração: as bombas atômicas lançadas sobre o país continuam a assombrar-nos. E, com elas, as perguntas clichê: foi mesmo necessário? Ou tratou-se de um monstruoso crime de guerra?
Longe de mim ter a pretensão de decidir um dos temas mais complexos da história contemporânea. Além disso, e como tenho uma inclinação para teorias morais deontológicas, sempre olhei para o bombardeio indiscriminado de civis —sejam eles ingleses, alemães, japoneses— com um arrepio de horror pela espinha abaixo. Nesse quesito, só agradeço aos céus nunca ter estado em posições de poder para violar questões de consciência.
Mas é importante ler História —e, sobretudo, opiniões mais utilitaristas sobre a matéria. Nos últimos dias, tenho acompanhado Max Hastings e o seu impressionante "Retribution: The Battle for Japan, 1944-45". A prosa é admirável ("comme d'habitude"), e Hastings vai apresentando fatos que fazem estremecer qualquer pequeno Kant.
Entre esses fatos estão os números: as bombas atômicas terão dizimado de imediato cem mil pessoas. Mas esses números, por mais chocantes que sejam, devem ser confrontados com práticas passadas —e estimativas futuras.
Antes das bombas atômicas, os Estados Unidos já tinham participado de campanhas aéreas contra a Alemanha e o Japão que provocaram 750 mil mortos. E, para ficarmos apenas no Japão, os bombardeios do general Curtis LeMay, antes de Hiroshima, já tinham ceifado 200 mil japoneses.
Curiosamente, o lançamento das bombas era encarado por LeMay como mais uma etapa na sangrenta luta contra as forças de Hirohito. Se Hiroshima e Nagasaki arrepiam, não é pelo número de mortos.
E se assim foi no passado, que dizer do futuro? Que dizer de um Japão que se recusava a aceitar a "rendição incondicional", mesmo que isso implicasse a devastação de um país inteiro?
Segundo Hastings, a continuação dos bombardeios "tradicionais" (a que se junta a invasão soviética da Manchúria) teria provocado 250 mil mortos por cada mês adicional de conflito.
E, sobre a hipótese de uma invasão terrestre (que Truman se recusava a autorizar), parece haver consenso historiográfico de que as mortes americanas suplantariam 1 milhão de soldados (e, no mínimo, cinco vezes mais entre japoneses).
No fundo, é o velho dilema utilitarista: vale a pena sacrificar 100 mil para evitar a morte de milhões? Os utilitaristas que respondam.
Claro que, nas polêmicas sobre Hiroshima, existem acusações recorrentes que passaram a figurar nos resumos da novela. Exemplo: as bombas, segundo a interpretação marxista, tinham como fim aterrorizar a União Soviética e conter o expansionismo de Stálin no Pacífico. Hiroshima e Nagasaki foram, digamos, meros pretextos.
O mais curioso no livro de Max Hastings é que ele não nega por completo essa acusação (que me parece óbvia). No entanto, é importante qualificar o "medo soviético" com duas observações históricas que me parecem óbvias também.
Em primeiro lugar, que esse "medo" era justificado em 1945 tendo em conta as brutalidades que Stálin já promovia no Leste da Europa. Quem relativiza o perigo soviético concede a Stálin um estatuto quase "humanitário" que seria impensável face a Hitler.
Mas existe um segundo problema com as visões marxistas sobre Hiroshima e Nagasaki: elas ignoram completamente o comportamento das elites políticas e militares nipônicas.
As melhores páginas de Max Hastings lidam precisamente com a conduta do imperador e dos seus ministros mais próximos (como Korechika Anami, o ministro da Guerra), que mesmo depois da primeira explosão ainda ponderaram continuar a lutar —uma mistura de nacionalismo, irrealismo e bravura apocalíptica que teria devastado ainda mais o Japão.
A conduta final de Anami (ao impedir o golpe contra o imperador) e a rendição de Hirohito são as duas únicas páginas de redenção para ambos. Na sexta-feira, Obama estará em Hiroshima. E, segundo a Casa Branca, o presidente não tenciona pedir desculpas.
Entendo que o gesto seria de um anacronismo escusado. Mas também confesso que não viria mal ao mundo se as desculpas fossem apresentadas ao povo japonês. Desde que devidamente repartidas entre os Estados Unidos e o próprio Japão.
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.