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    João Pereira Coutinho

    Anjos, demônios & otários

    29/05/2016 02h00

    Chegou a Portugal o episódio bárbaro de uma jovem de 16 anos violada por mais de 30 homens. Não vale a pena relembrar os pormenores - a vítima foi drogada, filmada, mostrada nas redes sociais - porque o caso virou assunto internacional.

    Certo, certo: Portugal também tem os seus horrores. Todas as semanas, violações, homicídios, violência doméstica com consequências funestas - o cardápio é longo, mesmo para um país com 10 milhões de habitantes e a fama, errônea, dos seus "brandos costumes".

    Mas a violação brasileira atinge outros patamares. E, com ela, a pergunta: como explicar a barbaridade?

    Conheço as explicações clássicas para a existência dos crimes, que usualmente oscilam entre a ignorância, a pobreza e a psicopatia (clinicamente falando). Nenhuma delas se aplica ao caso.

    Somos selvagens por ignorância? Com a devida vênia aos "racionalistas", essa explicação não resistiu a dois séculos de "modernidade". Como dizia George Steiner, é possível fazer uma longa lista de homens cultos que cometiam as maiores atrocidades sem um solavanco da consciência. E, inversamente, o analfabetismo não é um convite para chacinas em massa.

    O mesmo é válido para a pobreza, outra justificação clássica do mundo pós-marxista: se houvesse menos miséria, os homens seriam menos miseráveis (moralmente falando). Pois sim. Todas as informações disponíveis sobre os agressores não autorizam essa piedosa versão, que sempre me pareceu um insulto covarde a gente que vive na pobreza.

    Hoje, depois da falência das grandes ideologias redentoras, parece que atos inomináveis jogam no campeonato neuronal: não haverá na cabeça dos violadores uma "falha geológica" (digamos assim) que provoca estes terramotos de sangue?

    Admito que sim. Mas abrigar 30 ou mais criminosos sob a capa da psicopatia só faria sentido se o crime tivesse ocorrido numa convenção de psicopatas.

    O que resta, então?

    Talvez a velha palavra "maldade", que passou a ser vocábulo proibido na gramática dos homens contemporâneos. Entendo por quê. O "mal" tem conotações religiosas, ou pelo menos metafísicas, que não se ajustam ao materialismo do nosso tempo.

    E, no entanto, é essa dimensão misteriosa e sinistra que eu encontro em crimes como o brasileiro. Admito que uma cultura onde a violência contra as mulheres é moeda corrente (afinal de contas, é 1 violação a cada 11 minutos) ajude a criar um certo clima de "banalidade".

    Mas a dimensão, a organização e os requintes de malvadez do crime só são explicados, ou pelo menos entendidos, se abandonarmos qualquer ilusão "optimista" sobre a natureza humana. E aceitarmos, para início de conversa, que existem certas "formas de vida" formadas e deformadas por um carácter tenebroso.

    No fundo, eis a principal razão porque nunca marchei com as esquerdas românticas - ou com os libertários igualmente românticos: eles até podem partir de posições opostas; mas ambos cometem o erro de acreditar que o "leite da ternura humana" foi democraticamente distribuído.

    *

    Tempos atrás, o Facebook foi acusado de "parcialidade política. Segundo parece, a rede social mais famosa do mundo tinha por hábito não incluir temas "conservadores" na sua lista de notícias recomendadas. A empresa reagiu e negou com estridência essa manipulação.

    Pobre Mark Zuckerberg: não é preciso tanto despeito. Censurar notícias que não se adaptam à agenda progressista é um desporto que até a grande mídia pratica. Um exemplo?

    Com certeza: revela o jornal "The Daily Telegraph" que o Hamas, responsável pela Faixa de Gaza, prometeu para breve a execução de 13 palestinos. Nas palavras do procurador-geral, Ismail Jaber, as mortes devem ser públicas e, já agora, com numerosa audiência.

    Não sei se o Hamas tenciona também vender ingressos e montar um negócio de bebidas e pipoca. Recomendo. Faz muito calor no Oriente Médio e as receitas desses "shows de morte" sempre eram uma forma de animar a economia local.

    Verdade que as execuções em Gaza - previstas para "colaboradores" sionistas, homicidas ou traficantes de droga - são uma especialidade do território. De preferência, à luz do dia e sem estorvos desnecessários, como julgamentos justos ou o direito a uma defesa decente. Lembra o mesmo "Telegraph" que, em 2014, 7 palestinos já tinham sido fuzilados à porta de uma mesquita e depois arrastados pelas ruas de Gaza. Pessoalmente, o gesto só mostra a bondade do Hamas. Barbárie seria o inverso: primeiro, arrastar os desgraçados; e só depois abatê-los a tiro.

    Moral da história?

    Em Gaza, aplica-se a legislação mais bárbara, que inclui execuções extrajudiciais; tortura em larga escala; detenções arbitrárias; sem esquecer, claro, as chicotadas e as mutilações que fazem parte do colorido regional.

    No Ocidente, a "intelligentsia" progressista prefere não referir estes pormenores, optando antes pela clássica foto dos jovens palestinos com pedras na mão, enfrentando os tanques israelenses.

    Faz sentido: se houvesse real neutralidade na cobertura midiática, o mundo ainda morria de choque ao saber que não existem anjos sobre a Terra. Nem sequer na Santa.

    *

    O movimento dadaísta nasceu cem anos atrás e já existem asneiras por aí. Jonathan Jones, crítico de arte do "The Guardian" (palavra de honra), escreve sobre o pessoal do Cabaret Voltaire e depois afirma, com ares de grande originalidade, que o espírito dos verdadeiros dadaístas - Hugo Ball, Hans Arp, Tzara etc. - ficaria horrorizado com a descendência que hoje domina a arte contemporânea.

    Em 1916, no meio da loucura bélica, a ideia era destruir a "arte burguesa", expressão de um mundo decadente e homicida, através de uma forma de "anti-arte" que teve no urinol de Marcel Duchamp um dos seus exemplos mais vetustos.

    Em 2016, mil urinóis florescem todos os dias - e a "anti-arte" dos dadaístas converteu-se na suprema forma de "arte burguesa".

    À primeira vista, Jonathan Jones tem razão: com o café da manhã, abro o jornal e sou informado que Maurizio Cattelan interrompeu o seu caridoso silêncio para exibir no Guggenheim de Nova York um vaso sanitário de ouro (18 quilates) que só ficará concluído quando for devidamente usado. O exemplo de Duchamp, de facto, vulgarizou-se até à insanidade.

    Mas Jonathan Jones está errado se pensa que os originais e incorruptíveis dadaístas teriam perante a arte contemporânea dos nossos dias a mesma atitude que Cattelan espera para o seu vaso sanitário. Basta ler qualquer manual básico sobre o assunto (David Hopkins, para a Oxford, escreveu talvez um dos melhores): a "autenticidade" do dadaísmo foi uma questão de meses - e, para sermos rigorosos, nasceu e morreu com a poesia demente de Hugo Ball.

    Em pouco tempo, os revolucionários dadaístas passaram a exibir-se nos melhores salões "burgueses" de Zurique, de Paris, de Berlim - e a serem regiamente pagos pelas mesmas bolsas que eles diziam desprezar.

    Os descendentes de Duchamp não subverteram nenhuma "pureza" matricial. Eles apenas seguem os patronos - estética e eticamente - porque o otário, ontem como hoje, é intemporal.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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