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    João Pereira Coutinho

    Loucos, extraterrestres & facínoras

    13/06/2016 11h40

    Ser de direita é doença? Mais precisamente: doença mental?

    Uma pergunta dessas, formulada por um confesso conservador, deveria chegar e sobrar para o diagnóstico. Mas o mais curioso (para usar um eufemismo) é que existe uma indústria "acadêmica" e "científica" que tem prosperado com a hipótese.

    Nada de novo, dirão alguns: logo depois da Segunda Guerra Mundial, Theodor Adorno e sua tribo publicaram "The Authoritarian Personality", um estudo onde "conservadorismo" e "autoritarismo" eram sinônimos.

    Depois de Adorno, a moda continuou e eu, por interesse intelectual, andei lendo o que dizem psicólogos variados. O quadro é depressivo: a "direita" teme a mudança; abomina a desordem; desrespeita a razão; é intolerante com quem não se conforma; é instintivamente agressiva; não suporta a ambiguidade; e sempre demonstrou dificuldades com o pensamento abstrato.

    A "esquerda", pelo contrário, é o avesso de tudo isso –e uma pessoa pensa de imediato em Lênin, Stálin, Mao, Pol Pot, Fidel Castro– ou nas versões mais moderadas de Hugo Chávez ou seu discípulo Maduro, tudo exemplos incontestáveis de tolerância, brandura, amor ao pluralismo e ao pensamento racional.

    Infelizmente, o ridículo continua. E Dan P. McAdams, na revista "The Atlantic", escreve longas páginas sobre a "mente" de Donald Trump. Lendo e escutando os seus livros, entrevistas ou discursos, o dr. McAdams encontra uma personalidade agressiva; mendaz; autoritária; narcísica; amante de decisões arriscadas; e temerosa perante um mundo que percepciona como uma perpétua ameaça.

    Admito que tudo isso seja verdade. Ou, em alternativa, que tudo isso seja a verdade que Donald Trump usa para promover o seu produto. Mas esta tendência para "medicalizar" o adversário tem dois problemas clássicos.

    O primeiro, evidente, é nada nos dizer sobre o fenômeno Trump. A questão não está em saber se ele é agressivo, mentiroso, autoritário e etc. etc. (Um político que não seja isso, ou parte disso, escolheu a profissão errada).

    A pergunta que vale 1 milhão de dólares é saber como um exemplar desse tipo conquista metade da América -e pode chegar à Casa Branca. Sobre isso, o dr. McAdams nada nos diz. Entendo a silêncio. Os líderes podem ser doentes mentais; os eleitores, nunca -isso seria o supremo ultraje democrático.

    Mas existe uma segunda razão, menos óbvia, para deplorar a "medicalização" da política. É que isso já foi tentado no passado, quando regimes totalitários classificavam os seus opositores como seres mentalmente atrasados, que importava "curar" nos campos de "reeducação" respectivos. Deu no que deu.

    Sim, espero que Donald Trump perca as eleições. Mas se a única coisa que a inteligência "liberal" tem contra ele são insultos pseudocientíficos, o magnata do imobiliário pode começar a olhar para a Casa Branca como a nova joia do seu portfólio.

    *

    Estaremos sós no universo? Ou há mais pessoal espalhado por aí, que tem a fineza de nos fazer uma visita de vez em quando?

    Sempre gostei de ler prosa fantasista sobre extraterrestres. Melhor dizendo, sobre encontros com extraterrestres, que podem assumir diferentes formas -um sequestro; um jantar a dois; talvez uma noite apaixonada ao som da trilha sonora de "Contatos Imediatos de Terceiro Grau". O raciocínio dos apaixonados é impoluto: não estamos sós. Pensar o contrário revela apenas uma soberba terráquea.

    Mas depois, em contradição evidente com o cosmopolitismo astral, os alienígenas são sempre versões toscas de nós próprios, embora com retoques anatômicos dignos de uma aberração de circo (um só olho; cabeças estupidamente grandes; ausência de genitália; e etc. etc.).

    Irônico: os cientistas "sérios" que admitem a existência de vida em outras paragens falam sempre de entidades microscópicas - e não se atrevem a ir mais longe. Recentemente, Jean-Pierre Luminet, astrofísico francês do Centro Nacional de Pesquisa Científica, admitiu que em 20 ou 30 anos será possível apresentar uma bactéria para delírio das massas.

    Outros sábios, igualmente cautelosos, tentam arrefecer o entusiasmo com considerações epistemológicas alternativas: e se os seres humanos não conseguirem reconhecer a "dimensão" em que vivem outras entidades galácticas?

    Nada que convença os entusiastas, que vivem com os olhos postos no céu sem jamais conseguirem sair da Terra. Eles não admitem que sejamos peças únicas. Mas depois, quando põem a massa cinzenta a carburar, é cortar e coser sempre o mesmo terno.

    *

    Sempre me diverti com os títulos de alguns filmes em "brasileiro". "The Godfather", literalmente "O padrinho" (um termo da gramática mafiosa), é um irresistível "O poderoso chefão". Sem falar de um dos meus filmes favoritos de Woody Allen, "Annie Hall", nome da personagem feminina principal. No Brasil, ficou "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa".

    Entendo. Traduzir não deve ser tarefa fácil. Nem agradável - dias e dias fechado na escuridão da sala, a verter para a língua lusa o trabalho dos outros. O título é o único momento criativo do tradutor. Uma forma de ele imortalizar o seu nome na filmografia de um diretor qualquer.

    Mesmo "Alice", outro filme de Woody Allen, não ficou simplesmente "Alice". Foi preciso acrescentar um "simplesmente" ao "Alice". Deu "Simplesmente Alice", claro, embora eu talvez preferisse "Simplesmente Alice, claro".

    E quem fala em Woody Allen, fala em John Ford. Semanas atrás, escrevi uma crônica onde falava do homem que matou Liberty Valance (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2016/05/1776540-quarenta.shtml ). Era uma referência ao filme com o mesmo nome ("The Man Who Shot Liberty Valance"), que pelos vistos virou "O homem que matou o facínora" no Brasil. Leitores vários escreveram-me com a correção. Obrigado. Feito. Mas o essencial não está no título. Está no fato, divino, de ter leitores que têm John Ford na ponta da língua.

    Por causa deles, aliás, voltei a assistir a "O homem que matou Liberty Valance" (peço desculpa: o facínora) e apesar de não ser o meu Ford favorito (esse lugar no pódio vai para "The Searchers", traduzido no Brasil pelo fiel "Rastros de Ódio"), é talvez o segundo da lista.

    Que prazer voltar a privar com James Stewart, John Wayne, o grande Lee Marvin. E Vera Miles, longe das perversidades de Alfred Hitchcock.

    Para quem ainda não teve a sorte de assistir, um "apéritif": Ransom Stoddard (James Stewart), senador emérito, regressa a um pequeno vilarejo para o funeral de Tom (John Wayne) e aproveita o momento para contar aos plumitivos locais a verdadeira história do homem que matou o facínora.

    A lenda diz que foi ele, Ransom -um feito que proporcionou fama e carreira. Mas será que a lenda convive bem com os fatos? Ou a civilização é esse artifício que se sustenta, tantas vezes, sobre um passado de ficções?

    Não foi Descartes que fez de mim um céptico. Foi John Ford. Como olhar para o mundo, e sobretudo para o mundo imundo da política, com os mesmos olhos crédulos depois de vermos "O homem que matou o facínora"?

    Quando começa uma campanha eleitoral e os candidatos gostam de alardear os seus currículos, é em John Ford que penso. E, por cada "obra feita" que os políticos atiram à queima-roupa, pergunto sempre se a arma da grandeza foi realmente disparada pelo próprio -ou uma ficção que ganhou ares de verdade, com a prestimosa ajuda daqueles que imprimem a lenda.

    Ford é o mais moderno dos cineastas clássicos talvez por mostrar a ambiguidade da civilização face à mentira: o idealismo livresco, encarnado pelo impoluto Jimmy Stewart, condena-a; mas, na hora decisiva, até o mais justo entre os justos precisa de uma boa dose de ilusões para manter o show a funcionar.

    Maquiavel que me perdoe, mas John Ford também devia figurar na bibliografia de qualquer curso de Ciência Política.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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