É difícil dizer certas coisas. Como lembrava o imortal (e esquerdista) George Orwell, ver a realidade que temos na frente do nariz talvez seja o exercício mais complexo de todos. Mas devemos tentar.
E eu tento: regularmente, nas colunas desta Folha, critico o radicalismo islamita por seu ódio ao "estilo de vida" ocidental. Um ódio que não começou no 11 de Setembro nem com o saudoso Osama Bin Laden.
A história é mais antiga e remonta a finais do século 19, inícios do século 20. Como escreveu o historiador Bernard Lewis, a questão para os muçulmanos passava por saber como explicar o atraso material das suas sociedades quando comparadas com a prosperidade do Ocidente.
E a resposta, na maioria dos casos, não passou por uma análise à fraqueza institucional dessas sociedades e ao papel excessivo da religião nas esferas pública e privada. Como normalmente acontece quando existem complexos de inferioridade, a culpa não era dos próprios. O problema estava nos outros: nos ocidentais que venderam a alma pelo materialismo rasteiro da modernidade.
Agora que penso no assunto, essa também foi a atitude da primeira geração romântica perante o iluminismo continental e, claro, os exércitos napoleônicos. Paris podia representar o "progresso"; mas o verdadeiro progresso que interessava à "intelligentsia" das províncias germânicas era a defesa da "vida interior" e de uma "autenticidade" da existência que passava pela valorização da língua, da cultura, da nação –e, a prazo, do sangue e da raça. Ler Isaiah Berlin é instrutivo sobre a matéria. Mas divago.
Ou não. Porque a resposta da "intelligentsia" islamita ao atraso passou também por uma exaltação da pureza corânica como barreira necessária contra a contaminação ocidental. Uma atitude sem retorno, que se aprofundou violentamente com a desagregação do Império Otomano (depois da Primeira Guerra) e com a dominação "de facto" das potências europeias nas terras do Profeta.
Nos textos de Mawdudi, Hassan al-Banna ou Sayyid Qutb, encontramos sempre essa repulsa ao Ocidente pela revalorização radical da mensagem sagrada.
O caso de Sayyid Qutb, aliás, é exemplar: ele, o principal teórico do islamismo sunita, visitou os Estados Unidos na década de 1950. E, nas páginas que escreveu sobre o viagem, legou um retrato sinistro sobre a "libertinagem" dos nativos. Por "libertinagem", entenda-se: mulheres com maquiagem, usando minissaia e dançando com o sexo oposto. Qutb testemunhara o inferno e o inferno que ele viu perdurou.
Regularmente, repito, escrevo sobre o ódio islamita ao "estilo de vida" ocidental. E recebo como resposta, para além de insultos rasteiros, o clássico carimbo da "islamofobia". O terrorismo, quando existe, é sempre culpa dos Estados Unidos, de Israel, da França, do Mickey Mouse e do Pato Donald.
Ou então, em ligeira variação da cegueira, a culpa é das armas que se vendem sem controle, como afirmou Barack Obama depois do massacre da Flórida –o maior ataque terrorista em solo americano desde o 11 de Setembro.
Azar, senhor presidente: os fatos começam a surgir na frente do nosso nariz. Temos um cidadão americano, de origem afegã, que jurou lealdade ao Estado Islâmico. E que escolheu como alvo uma boate gay onde abateu 50 pessoas e feriu 53 (no momento em que escrevo).
Como é evidente, ataques "homofóbicos" acontecem em qualquer lugar (e blablablá). Mas podemos afirmar, sem correr o risco de "islamofobia", que o tratamento bárbaro que muitos países islâmicos reservam para homossexuais, mulheres adúlteras ou simplesmente "emancipadas" também explica o ódio cultural (e religioso) de Omar Mateen?
Eu sei que, em matéria de "homofobia", ninguém bate a intolerância da Igreja Católica. Mas será possível sugerir que chicotadas, prisão efetiva ou até enforcamento de homossexuais também deveria merecer mais atenção das brigadas politicamente corretas, que só entram em fúria quando o Papa não abençoa o casamento gay?
Eis a moral da história: quando escrevo sobre o ódio do radicalismo islamita ao "estilo de vida" ocidental, tudo que defendo é esse estilo de vida. Você sabe: o direito a cada um viver como entende, com quem entende, em segurança e liberdade, sem nenhuma punição "sagrada". O básico. Porque, se fecharmos os olhos ao básico, perderemos muito mais do que o nosso nariz.
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.