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    João Pereira Coutinho

    A política do futebol

    12/07/2016 02h00

    1. Estados Unidos da Europa? Muito gente acredita que sim: chegará o dia em que os velhos nacionalismos serão suplantados por uma autoridade supraestatal, apagando séculos e séculos de diferenças religiosas, culturais, linguísticas etc.

    O futebol, e em particular a Eurocopa, não permite essas fantasias. Assisti aos jogos. Assisti aos hinos antes dos jogos. E assisti aos textos que foram escritos sobre alguns dos embates. Quando a Polônia enfrentou a Alemanha, alguém acreditou que aquele jogo era só mais um jogo?

    O mesmo vale para Rússia X Eslováquia ou para Alemanha X França. Em cada confronto, havia uma memória histórica –e uma fortíssima identidade nacional– a pairar sobre o gramado.

    Não admira que, aos olhos da Comissão Europeia, a pulsão patriótica do futebol não seja coisa saudável. Acredito que não seja. Mas a realidade nem sempre é saudável. Sobretudo quando existe a tentação de a suprimir ou ignorar.

    2. Portugal é campeão europeu de futebol e os portugueses não sabem por quê. Entendo os meus compatriotas. Antes dos jogos começarem na França, havia pelo país a mesma expectativa alucinada de que tudo seria fácil: um caminho de vitórias retumbantes antes da final contra a França.

    Curiosamente, a torcida só acertou na França. O resto não foi fácil, para usar um eufemismo. Em sete jogos, Portugal venceu uma partida nos 90 minutos (contra o País de Gales). E, pelos recantos da nação, a pergunta angustiada: onde está o futebol inspirado que deslumbrava o povo grato?

    Não estava. E o técnico Fernando Santos, com a equipe a empatar, proclamava com fé inabalável que o país seria campeão.

    Os comentadores riram alto. Eu não ri. E, instintivamente, lembrei-me de um ensaio clássico de Michael Oakeshott, "Rationalism in Politics".

    Como o título indica, Oakeshott pretendia analisar o mais poderoso movimento intelectual moderno –o racionalismo, ou seja, uma atitude radical de agir no mundo pela recusa da tradição, do hábito e do preconceito, usando apenas a razão como guia supremo.

    O racionalista, para Oakeshott, possui "o caráter do engenheiro"; os problemas, quando surgem, devem ser resolvidos por "administração racional".

    Dito e feito. Não começo pela ironia óbvia de dizer que o técnico português é engenheiro de formação.

    Prefiro escrever que, na sua conduta, ele exibiu as virtudes de um racionalista.

    Em primeiro lugar, ao recusar a tradição –no caso, a tradição do futebol português– que se traduzia, invariavelmente, em belos jogos e dolorosas derrotas. Quando os especialistas afirmavam que a equipe portuguesa era uma espécie de "Brasil europeu", eles tinham metade da razão. (A outra metade, claro, estava na inexistência de copas para mostrar ao mundo.)

    Mas o engenheiro fez mais: também recusou o hábito e o preconceito. Contrariando a ilusão estética da torcida ("jogamos mal e por isso vamos perder"), ele contrapunha outra máxima: "Jogamos mal mas nem por isso vamos perder". E como operar esse milagre?

    Pela "administração racional" da equipe que tinha: um gênio (Cristiano Ronaldo) mais 22 jogadores de qualidade variável –mas com alma de "remadores de Ben-Hur", para usar a expressão de Nelson Rodrigues.

    E eles remaram sem nunca alterar o ritmo da obstinação e do sofrimento. Os jogos eram maçadores porque, em rigor, não eram jogos de futebol. Eram partidas de xadrez, com as peças em movimento geométrico.

    Portugal não derrotou a França. Portugal fez xeque-mate.

    3. Os portugueses não são caso único. Olho para uma lista de vencedores da Copa do Mundo e da Eurocopa nos últimos anos. Não encontro uma única equipe com um futebol memorável e deslumbrante. Corrijo. Encontro, sim. Mas essas equipes nunca chegam à final e nunca vencem a competição.

    Alemanha, Itália, Espanha –os estilos de jogo são semelhantes: uma mistura de solidez defensiva, cautela no ataque e nenhum espaço para o improviso e para a inspiração. Os jogadores não são jogadores; são robôs que cumprem uma tarefa, como peças anônimas de uma máquina que os transcende.

    Talvez esse seja o futebol do futuro: um futebol de eficácia e sem alma. Mas, aqui entre nós, eu terei muitas saudades do Brasil de Zico, da Argentina de Maradona –e do Portugal de Rui Costa.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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