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Colunistas
Wednesday, 27-Nov-2024 23:47:45 -03João Pereira Coutinho
Vitória de Trump seria pior para o Ocidente do que o terrorismo de hoje
02/08/2016 02h00 Erramos: esse conteúdo foi alterado
Donald Trump põe em causa a participação dos Estados Unidos na Otan, mesmo que os países bálticos estejam ameaçados pela pata de Moscou. Donald Trump exorta o presidente Vladimir Putin a revelar e-mails comprometedores de Hillary Clinton.
Essas duas aberrações chegavam e sobravam para liquidar qualquer candidato "sério" à Casa Branca. Hoje, é apenas "politics as usual". Se os Estados Unidos não estão profundamente doentes, eu não sei o que é a doença.
Mas a revista "The Economist" sabe. No seu mais recente número, a publicação anuncia, com ares de grande novidade, que a divisão política do momento não é mais entre esquerda X direita. Mas entre abertura X fechamento.
De um lado estão aqueles que defendem a abertura ao mundo –material, intelectual, humana. Do outro, os que defendem barreiras, muros, isolacionismo. E, como normalmente acontece, é possível encontrar todo tipo de fauna nos dois lados da margem.
Trump é um caso: o seu desprezo pela Otan e a defesa de uma América fechada sobre si própria ("Americanismo, e não globalismo, será o nosso credo", diz o fanfarrão) são indistinguíveis da retórica anti-Otan e antiglobalização que é possível encontrar nas brigadas mais à esquerda. Os extremos se tocam?
Mary Altaffer/Associated Press Donald Trump cumprimenta seu companheiro chapa, Mike Pence, na Convenção Republicana Naturalmente. Sempre se tocaram. Sim, é possível dizer que a grande distinção política da modernidade é entre esquerda X direita –conceitos espaciais que nasceram na Revolução Francesa, ou seja, com o posicionamento da nobreza, do clero e do "terceiro Estado" no salão da Assembleia Nacional. Os dois primeiros ficaram à direita do presidente. O resto foi história.
Mas também é possível argumentar que existe uma distinção política mais antiga –e talvez mais fundamental. Quem o defende é Karl Popper, em livro de 1945, intitulado "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos". Quando a "Economist" defende que a grande novidade política é a divisão entre abertura X fechamento, alguém deveria enviar o clássico de Sir Karl para o pessoal.
Defende Popper que essa tensão entre "sociedades abertas" e "sociedades fechadas" (ou, se preferirmos, "tribais") sempre fez parte da história intelectual do Ocidente. Muito antes da esquerda ser esquerda e da direita ser direita, havia dois modelos tutelares que influenciaram profundamente o pensamento e a ação dos homens: Atenas e Esparta.
As virtudes da primeira estão presentes nas palavras do governante Péricles (495""429 a.C.). No fim do primeiro ano da guerra contra Esparta, em 431 a.C., Péricles fazia o elogio fúnebre dos soldados que tombaram por Atenas. E defende os seus valorosos atos com as qualidades da cidade pela qual morrerem: a sua vocação democrática, comercial, cosmopolita, que servia de modelo para todo o Egeu.
As virtudes da segunda estão nos textos de Xenofonte (430""350 a.C.), um ateniense admirador de Esparta, e na apologia que ele faz de uma sociedade fechada, xenófoba, marcial.
Esparta venceu Atenas na Guerra do Peloponeso –um fato traumático que não passou ao lado de Platão quando ele escreveu a sua "República", um tratado que repudia a visão de Péricles. E, depois de Platão, defende Karl Popper que Hegel e Marx prolongaram o apelo da "sociedade fechada".
Mas a derrota de Atenas é apenas ilusória quando o ritmo da história é mais lento do que o ritmo dos homens. Para começar, foi o exemplo político de Atenas que inspirou as democracias liberais modernas e razão primeira da prosperidade, das liberdades e dos avanços científicos dessas democracias.
E, para acabar, o paradigma de Esparta, levado ao extremo nos projetos totalitários do comunismo e do nazismo, foi derrotado no século 20 pelos discípulos de Péricles.
Isso significa que a tensão entre abertura X fechamento está resolvida?
Não está. Donald Trump, nos Estados Unidos, ou Marine Le Pen, na França, são exemplos de como Atenas continua a ter os seus traidores. Gente que, para derrotar inimigos reais (radicalismo islâmico) ou imaginários (imigrantes pacíficos em busca de uma vida melhor), está disposta a copiar Esparta.
A vitória de Trump (em 2016) e de Le Pen (em 2017) seria um golpe para o Ocidente livre bem mais profundo do que os atentados terroristas sofridos até hoje.
Escritor português, é doutor em ciência política.
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