• Colunistas

    Wednesday, 01-May-2024 09:10:58 -03
    João Pereira Coutinho

    Ambrose Bierce mostra os limites do cinismo como forma de pensamento

    16/12/2016 12h59

    Existem livros que li na adolescência e que nunca mais voltei a provar. Falta de tempo, com certeza. Excesso de medo, definitivamente. Haverá coisa mais triste do que reler um livro relevante que se revela, afinal, absolutamente irrelevante? É como descobrir, muitos anos depois, que uma namorada de boa memória foi infiel o tempo todo. Não mata. Mói.

    Exatamente como Ambrose Bierce (1842-1913), velha paixão: reler o seu "Dicionário do Diabo" ainda provoca um sorriso aqui e ali. Mas como foi possível ter elevado este livro a bíblia cínica dos verdes anos? Falo em cinismo e falo bem.

    Hoje, farejando o bicho, vejo que o melhor de Bierce está na elegância irônica, não no cinismo mecânico. Exemplo: como resistir à definição de "Macaco" ("Um animal arbóreo que se sente em casa em árvores genealógicas")?

    Pena que o resto seja um deserto árido e, como todos os desertos, repetitivo. Avanço pelas páginas e, a certa altura, eu próprio já antecipo as definições. O amor é uma ilusão. A amizade é uma traição. O egoísmo é uma virtude. A orfandade é um benção. A democracia é uma piada. E etc. etc. –até ao abismo do tédio.

    O problema, note-se, não está no amoralismo de Bierce. Está na previsibilidade. Uma previsibilidade que, ironicamente, converte o amoralismo numa forma postiça de moralismo. Um cândido do avesso não deixa de ser um cândido. A presunção de que vivemos "no pior dos mundos" é tão ridícula como a crença de que vivemos "no melhor dos mundos".

    Ambrose Bierce é um moralista vulgar como qualquer moralista vulgar. E com uma séria desvantagem: ao contrário da sua "nêmesis", ele nem sequer tem a consolação de um dogma que esteja a salvo do dilúvio. Para repetir uma conhecida objeção aos limites do relativismo, se nada realmente interessa, rapidamente concluímos que o "Dicionário" é redundante. Bem escrito, sim, mas redundante.

    Ler Ambrose Bierce, para além da curiosidade arqueológica, é uma lição sobre a falácia do cinismo como sistema. Ele é um recurso literário valioso quando usado com parcimônia e critério. Mas deixá-lo à solta como um potro selvagem, atropelando tudo que existe apenas porque existe, é uma forma de suicídio intelectual.

    Evelyn Waugh, um falso cínico, dizia que ainda existem causas pelas quais vale a pena lutar contra. Mas como o próprio Waugh sabia e brilhantemente demonstrava, até para lutar contra é preciso lutar a favor.

    Reprodução
    Capa do livro 'O Dicionário do Diabo', de Ambrose Bierce
    Capa do livro 'O Dicionário do Diabo', de Ambrose Bierce
    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024