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    João Pereira Coutinho

    Desejo aos leitores um feliz 2016 (e não, não é erro)

    30/12/2016 14h22

    Três personagens entram no restaurante. Sentam-se à mesa. O empregado aproxima-se dos comensais. O primeiro olha para o cardápio e escolhe de acordo com as regras da casa. O segundo olha para o cardápio, rejeita enfaticamente o cardápio —e pede um prato que não está na lista. O terceiro recusa olhar para o cardápio e pergunta apenas ao garçom: "Você recomenda algo em especial?"

    Pergunta: quem são esses três personagens?

    Resposta: o primeiro é um liberal, o segundo é um revolucionário, o terceiro é um conservador.

    Que o mesmo é dizer: o primeiro respeita a letra escrita e segue a constituição do restaurante; o segundo recusa a legalidade gastronômica, repudia o que foi deliberado pelo chef e pretende criar um novo cardápio com iguarias que apenas existem na cabeça dele; o terceiro confia na tradição da casa, na experiência dos seus membros — e espera que lhe tragam os pratos que foram requintados ao longo do tempo.

    Durante anos, esse foi o meu teste ideológico aplicado a terceiros. Raramente falhava. Sentado à mesa, contemplava o meu parceiro e chegava facilmente a uma sentença. Falo em "parceiro" e não é por acaso: as mulheres tendem a ser sempre mais revolucionárias. Querem combinar pratos; separar molhos; substituir carnes assadas por grelhadas (ou vice-versa). O filme "Harry e Sally - Feitos Um para o Outro" explica. Mas divago.

    Com o tempo, aprendi que existe um segundo teste que permite distinguir "progressistas" de "conservadores": os textos que ambos escrevem na virada do ano.

    Os primeiros ignoram 2016 e só pensam em 2017. Pior: partindo do pressuposto de que estão vivos, ignoram por completo que sobreviveram mais um ano; esquecem as bênçãos que tiveram nesse ano; e olham com ganância desmedida para o ano que ainda nem conhecem.

    Querem mais, sempre mais, insuportavelmente mais. Saúde. Dinheiro. Amores. Divórcios. Viagens. Implantes. Novos neurônios para o caçula. O funeral do patrão. Aquele carro, aquela casa. O céu. A lua.

    E quando, hipocritamente, gostam de apresentar uma máscara de humildade (apenas mais tempo livre; apenas deixar o cigarro; apenas perder dois quilos), o vício progressista continua a corroê-los: um criminoso esquecimento do passado.

    Não contem comigo, ingratos! Agora que 2016 desaparece no horizonte como um cobói de faroeste, brindo a ele porque

    a) Estou vivo (a maior parte do tempo);
    b) Estou saudável (idem);
    c) Estou sóbrio (ibidem);
    d) O cabelo resiste heroicamente;
    e) Os selvagens dos meus vizinhos pediram o divórcio e o apartamento está silencioso, vazio e à venda;
    f) Portugal não sofreu nenhum atentado terrorista;
    g) Nenhum atentado terrorista atingiu amigos e familiares;
    h) Amigos e familiares continuam a suportar-me (apesar das minhas sabotagens);
    i) Os leitores também;
    j) Não pratiquei exercício físico;
    k) Portugal não faliu (ainda);
    l) Leonard Cohen só morreu depois de lançar "You Want it Darker";
    m) Descobri um novo romancista (Olivier Bourdeaut) e o seu primeiro romance ("En attendant Bojangles", "Esperando por Bojangles");
    n) Confirmei, com o "The Knick" de Steven Soderbergh, que o grande cinema está hoje na tv;
    o) ...Ou talvez não: houve "Anomalisa", de Charlie Kaufman;
    p) Há dinheiro no bolso para o uísque das crianças;
    q) Escrevi um punhado de textos que não envergonham a musa;
    r) Descobri que uma hérnia do disco, longe de ser um drama, pode ser a desculpa perfeita;
    s) O mesmo vale para enxaquecas - fáceis de inventar, impossíveis de provar;
    t) Não trabalhei mais do que devia;
    u) Confrontaram-me com provas audiovisuais de que ressono —mas a minha senhora não se importa (demasiadamente);
    v) O meu filho já caminha e corre para todo lado, embora esteja sempre à espera que o pai faça o mesmo;
    w) Os meus alunos sabem que o professor chegou aos 40 anos e mostram grande respeito pela terceira idade;
    x) Sobrevivi a um aparatoso acidente de bicicleta;
    y) A bicicleta estava parada e eu em cima dela.
    z) Foram só dois dentes.

    A todos os leitores, desejo do fundo do coração um excelente 2016!

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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