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    João Pereira Coutinho

    Amar uma fanática é cansativo e inútil

    24/02/2017 02h00

    Li, gostei e concordei com a crônica de Contardo Calligaris. O amor sobrevive a grandes divisões ideológicas? Falamos de amor, não de paixão. Sobre a paixão, diria que tudo é possível, embora a tentação fatal (e carnal) fosse acrescentar que até existe um atrativo suplementar em dormir com o inimigo. Literalmente. (E já escrevi a respeito.)

    Mas amor? Para usar os exemplos do meu ilustre colega, um "petista" poderia amar um apoiante de Temer? Ou vice-versa? E que dizer das notícias –diárias, diárias— de famílias americanas que se desfazem porque um dos parceiros ama (ou odeia) Donald Trump?

    O meu coração adolescente chora. Se Trump triunfa sobre o amor, o mundo caminha para o abismo. O amor triunfa sobre tudo, lemos e escutamos desde as primeiras hormonas. E o cinema –maldita mentira!— só serve para reforçar nossas ilusões.

    Verdade que Sydney Pollack, em "Nosso Amor de Ontem " (um filme de que gosto muito; "guilty pleasures", não faça caso), já tinha lançado o aviso: uma visão política não é apenas uma visão política. É uma "forma de estar no mundo" que, no caso em apreço, separou a esquerdista Kattie (Barbra Streisand) de Hubbell (Robert Redford). O filme de Pollack era a primeira pedra na minha engrenagem juvenil.

    Até chegar a experiência, madrasta de todas as coisas. Deixando de lado as paixões, que foram como vieram, ligações mais profundas não sobreviveram a essas "formas de estar no mundo".

    Mas aqui, com a devida vênia a Contardo Calligaris, deito-me no meu divã pessoal e contemplo: diferenças entre esquerda e direita são demasiado estreitas para explicar a separação dos amantes. No meu caso, no meu pessoalíssimo caso, não é essa a distinção fundamental.

    O desafio é outro: serei capaz de amar alguém para quem a liberdade individual é um pormenor? Alguém que não aceita as limitações e as contingências da condição humana? Que contempla o mundo como uma conspiração permanente –e a própria vida como uma luta permanente? Que nunca duvida das suas certezas e que vê o compromisso ou o erro como um vexame intolerável? Alguém para quem o sentido de humor é acessório ou até ridículo?

    Em suma: seria capaz de amar alguém que não tivesse a plena consciência de que é apenas um membro da espécie ­Homo sapiens­? E que, consequentemente, não cultivasse as doses certas de humildade, compaixão –e riso?

    Não, não seria. Não, nunca fui. Um leitor apressado diria que a minha lista de vícios assenta providencialmente em mulheres de esquerda. Concordo –"até certo ponto", como diria um personagem de Evelyn Waugh. Conheço mulheres de esquerda que desmentem essa tese. Conheço mulheres de direita que a desmentem também.

    Pensando melhor, a Yoko Ono das relações amorosas não é a "esquerda" ou a "direita". É apenas a presença (ou a ausência) desse velho demônio que dá pelo nome de fanatismo.

    Amar uma fanática –em sentido lato e não apenas político— é cansativo e inútil. E o amor sobrevive a tudo, exceto ao cansaço e à esterilidade.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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