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    João Pereira Coutinho

    O governo ou a internet podem decidir as leituras dos brasileiros?

    28/11/2017 02h00

    Angelo Abu
    Williams' Brazilian driver Felipe Massa steers his car during the Abu Dhabi Formula One Grand Prix at the Yas Marina circuit on November 26, 2017. / AFP PHOTO / GIUSEPPE CACACE ORG XMIT: 1457

    Viver é aprender. Leio nesta Folha que livros para crianças são retirados do mercado por outras "crianças" (no sentido mental da palavra). Essas "crianças" podem ser de direita ou de esquerda, prova definitiva de que a infantilidade, como sempre, é democrática. Ou podem ser membros do governo, que obedecem fielmente às ordens das massas.

    Na reportagem, aliás excelente, temos dois livros infames: "Peppa" e "Enquanto o Sono Não Vem".

    O primeiro narra a história de uma garota com cabelos fortes e crespos que decide alisá-los. Estereótipo racista, claro, apesar de Peppa ser branca.

    No segundo, um pai faz uma proposta de casamento à filha (o conto é popular). É o grande jackpot: incesto e pedofilia. Ambos foram banidos de escolas e livrarias.

    Glorioso mundo, este, em que são os governos ou a internet quem decide o que os brasileiros podem ler. Eu nasci no tempo em que eram as editoras e os leitores, mas admito que os dinossauros só existem para serem extintos.

    Só lamento que o Brasil ainda esteja longe de certas limpezas mais modernas. No jornal "The Independent", por exemplo, encontro os crimes mais comuns que os livros infantis reproduzem impunemente.

    Tudo começa com estereótipos de gênero. Mulheres? São sempre donzelas esperando pelo seu príncipe, o que concede um estatuto passivo à fêmea arfante.

    Vários pesquisadores, que perdem o seu tempo e o nosso dinheiro com seus "estudos", defendem que esses retratos criam uma pressão intolerável sobre ambos os sexos: eles, para serem príncipes; elas, para serem princesas.

    Sou a prova viva desse estresse: quando conquistei a minha dama, o uso diário de armadura e o cinto de castidade dela adiou, por seis meses, qualquer tipo de intimidade.

    Quando finalmente houve aproximação física, a honestidade foi o melhor remédio: "Querida, espero que compreendas: eu sinto que estou um pouco enferrujado".

    Mas tem mais. Como é possível vender a ideia de que o casamento com o príncipe é sempre um troféu para as senhoras? Isso não cria a ideia de que o celibato é uma marca de fracasso?

    Claro que cria. Uma amiga minha, solteira aos 40, diz que a culpa da sua solidão é dos passarinhos. "Nunca apareceram para me vestir como fizeram com Cinderela antes do baile". Compreendo o drama. Embora, no caso dela, sempre tenha me questionado se o problema foram mesmo os passarinhos. No próximo horário de visitas, prometo investigar.

    Finalmente, como admitir que as figuras femininas sejam sempre "belas, recatadas e do lar" (obrigado, Michel) –ou, em alternativa, madrastas cruéis ou bruxas malignas? Não há um meio termo?

    Há. A "Pequena Sereia". Mas, quando relembro esse simples fato, as mais feministas acusam-me de querer tirar a mulher da cozinha para enfiá-la diretamente na frigideira.

    De resto, a mesma reportagem do "The Independent" lamenta que as histórias que lemos às crianças não têm grande diversidade racial, física ou sexual.

    Difícil discordar. Aliás, o caso é tão grave que eu próprio me vi obrigado a escrever alguns contos para ler às minhas sobrinhas.

    Um deles, sobre um jogador de basquete que sonhava ser um pigmeu transexual, foi recebido em lágrimas pelas meninas. Na altura, fiquei orgulhoso com tanta comoção. Hoje tenho dúvidas, sobretudo quando os pais me proibiram de voltar a entrar lá em casa.

    Há um longo caminho a percorrer para limparmos as histórias infantis de estereótipos e preconceitos. E, nesta luta, qualquer contributo anônimo é bem-vindo.

    Por isso ergo o meu copo a Sarah Hall, uma mãe inglesa que quer "A Bela Adormecida" removida das escolas. Para a sra. Hall, o livro é um convite ao abuso sexual: a Bela, obviamente adormecida, não deu o seu consentimento para ser beijada pelo Príncipe.

    Nunca tinha pensado no assunto. Na minha ingenuidade, sempre considerei que o beijo era uma metáfora da respiração boca a boca. Mas, refletindo melhor, a única forma de admitir o beijo do Príncipe é se houver depois um processo judicial contra ele.

    Não sei se Sarah Hall estaria disposta a reescrever a história. Mas, pelo sim, pelo não, vou dar o contato da minha amiga para que o possam fazer em conjunto. Quem sabe?

    Com sorte, ainda aparecem os passarinhos para dar uma ajuda.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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