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    João Pereira Coutinho

    Só consigo condenar uma pessoa depois de ela falar, nunca antes

    12/12/2017 02h00

    Angelo Abu

    Liberdade de expressão é tema que nunca cansa. Mas é raro encontrar uma cabeça pensante que possa ir além dos clichês sobre o assunto. Teresa M. Bejan, professora em Oxford, assinou um ensaio na revista "The Atlantic" que merece análise –e uma leve discordância minha. Mas vamos aos argumentos.

    Diz a professora Bejan que, nas polêmicas contemporâneas sobre liberdade de expressão –exemplo óbvio: alunos progressistas censurando palestrantes conservadores em universidades–, encontramos dois conceitos de liberdade de expressão com raízes assaz antigas –e consequências distintas. "Isegoria" e "parrésia", eis os conceitos.

    Qualquer aluno de filosofia antiga os conhece. "Isegoria" designa o direito do cidadão grego a participar no debate público (leia-se: na "eclésia", na assembleia democrática). "Parrésia" é um termo mais amplo: significa liberdade para dizermos o que pensamos no espaço público (ágora) e, lógico, assumir as consequências pelas palavras.

    Sabemos como essas consequências podiam ser fatais: Sócrates foi condenado à morte por desrespeitar os deuses da cidade e corromper a juventude ateniense.

    Diz a dra. Bejan, com razão, que os dois conceitos tiveram evoluções distintas depois da queda de Atenas. "Isegoria" praticamente desapareceu da paisagem –até ressurgir, depois da Revolução Gloriosa de 1688. Na "Bill of Rights" de 1689, era garantida a liberdade de expressão para participar nos debates do Parlamento.

    Um século depois, a "isegoria" grega casou bem com o Iluminismo continental: para Kant, a liberdade de expressão não significava a liberdade para dizermos o que pensamos. Significava liberdade para dizermos o que pensamos racionalmente –uma importante distinção.

    Evolução diferente teve o conceito de "parrésia". No Renascimento, essa liberdade, que tantas vezes resvalava para a "licenciosidade", enformou textos vários de crítica ou aconselhamento dos príncipes (Maquiavel, Erasmo etc.).

    Mas um acontecimento sísmico, há precisamente 500 anos, mostrou a força dessa liberdade subversiva, que se faz ouvir fora da ortodoxia vigente: a Reforma Protestante, claro, que fundiu a unidade da fé cristã.

    E hoje?

    Defende Teresa M. Bejan, em tom acusatório, que aqueles que procuram silenciar vozes conservadoras nas universidades "liberais" americanas defendem um conceito de "isegoria" contra um conceito de "parrésia". Sem dúvida –e confesso que nunca tinha pensado no assunto dessa forma.

    Porém não subscrevo a tese da prof. Bejan de que "isegoria", para muitas almas progressistas, significa igualdade de acesso à opinião –um "direito cívico" que implica silenciar as vozes do "privilégio" em nome daqueles que nunca tiveram espaço para falar (negros, gays, mulheres etc.).

    Com a devida vênia, não é isso que está em causa. E, mesmo que fosse, não vejo de que forma a censura de uns significaria o engrandecimento de outros. Nem tudo na vida é um jogo de soma zero.

    Retomando a feliz distinção entre uma "liberdade de expressão" (iluminada) e uma "liberdade de expressão" (desregrada), o que existe nos novos censores é a noção –bem kantiana, aliás– de que a "liberdade de expressão" só é possível dentro de um código pré-estabelecido de verdades fundamentais e inquestionáveis.

    No limite, essa concepção de "liberdade de expressão" não enfrenta os "privilégios". Pelo contrário: defende os privilégios de uma suposta elite contra qualquer voz potencialmente subversiva –e, por causa disso, acusada de ser ilógica, obscurantista, irracional etc.

    É um caminho perigoso. Às vezes, é preciso escutar o que não gostamos para encontrar a verdade –ou, então, confirmar as nossas verdades. Será preciso lembrar que, para muitos filósofos "iluministas", a solução política preferida não era a democracia pluralista –mas o "despotismo iluminado"?

    Entre os dois conceitos de liberdade de expressão, fico com os parresiastas. Não porque eles têm razão. Mas porque eles podem ter razão (ou não) –duas alternativas que contribuem para o meu conhecimento.

    E, se eles ultrapassarem os limites da decência e até da lei, nenhum problema: que assumam as consequências –sociais ou penais– dos seus atos.

    Pode ser mania minha. Mas só consigo condenar uma pessoa depois de ela falar, nunca antes.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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