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    João Pereira Coutinho

    Nos debates de hoje, o insulto é o único argumento político tolerado

    19/12/2017 02h00

    Angelo Abu/Folhapress

    Foram dez debates ao vivo.

    A televisão dos Estados Unidos nunca mais foi a mesma. Falo, claro, dos encontros de boxe entre William Buckley e Gore Vidal que o documentário "Best of Enemies" relembra.

    Ainda não tinha assistido ao filme de Robert Gordon e Morgan Neville. Belíssima experiência. E terrível ano: 1968. A guerra do Vietnã lá longe, a violência racial (e os protestos estudantis) bem perto. E ainda o homicídio de Bobby Kennedy (e, já agora, de Martin Luther King, que os autores esqueceram).

    Mas 1968 foi o ano das convenções democrata e republicana para a escolha dos candidatos à Presidência. Os principais canais de TV montaram os seus circos: a NBC, a CBS. E, em terceiro lugar, a ABC, que procurou desesperadamente uma "vantagem competitiva".

    Encontrou-a. Convidando Buckley e Vidal para uma valsa. Ambos aceitaram. É legítimo afirmar que nunca mais a televisão americana teve dois intelectos daquela magnitude a debater política em todas as casas da República.

    William Buckley era o "intelectual público" mais importante da direita americana. Fundador da "National Review", que hoje é uma sombra dos tempos áureos, Buckley era conhecido por tiradas espirituosas e assassinas contra esquerdistas vários. Além disso, havia nele um estilo –uma "afetação", digamos– que o tornava irresistível para qualquer ser pensante.

    Gore Vidal era o "nemesis" à esquerda –embora, aqui entre nós, a erudição e o talento literário de Vidal estejam vários furos acima de Buckley.

    Não sou um fã incondicional dos seus romances históricos, confesso. Mas, como ensaísta, Gore Vidal é um dos gigantes do século 20.

    O confronto prometia.

    E a promessa cumpriu-se: no documentário, assistimos a várias passagens dos debates. Nocaute pessoal. Buckley não se preparou para os duelos. Gore Vidal, pelo contrário, preparou tudo obsessivamente. Mas, com preparação ou sem ela, a riqueza do vocabulário é de estarrecer qualquer um.

    Mas não é apenas o vocabulário. As frases parecem ter sido escritas por Oscar Wilde –a ambiguidade, o humor, a tentação pelo aforismo.

    Disse Oscar Wilde? Não é preciso. Buckley e Vidal falavam como escreviam –uma observação que alguém fez um dia sobre Christopher Hitchens. Assino em baixo. Hitchens, de fato, era o único que poderia rivalizar com Buckley ou Vidal.

    Assim foi durante algum tempo. Mas, no oitavo debate, a valsa terminou. Vidal batizou Buckley com a palavra "cripto-nazista". Buckley perdeu a compostura: "Escute aqui, seu viado, se você me chama cripto-nazista outra vez eu esmurro a sua cara".

    O que interessa no momento não são só as palavras rudes. São os rostos: no de Buckley, rancor puro; no de Vidal, um sorriso de triunfo.

    Os debates ficaram na história. A ABC estourou no ibope. E as televisões americanas passaram a ter comentadores residentes, embora a expressão correta seja "opositores residentes". E Buckley? E Vidal?

    Curiosamente, o destino de ambos ficou marcado por aqueles segundos. O ódio, que era larvar, tornou-se explícito –com insinuações homossexuais (de Vidal contra Buckley), por processos judiciais (de Buckley contra Vidal, e vice-versa) e por vinganças mesquinhas (de Vidal), que incluiu Buckley num dos seus romances ("Burr") como o personagem (sodomita) William de la Touche Clancy.

    Nesse quesito, houve mais dignidade em Buckley, que nunca se perdoou pela derrota –e pela mancha retórica. No final da vida, quando o confrontaram na TV com aqueles dez segundos fatais, Buckley ficou em silêncio. Limitou-se depois a confessar a um amigo, envergonhado: "Eu julgava que essas fitas estavam destruídas".

    Assistir a "Best of Enemies" permite fazer um contraste entre 1968 e as vésperas de 2018.

    Quando tenho o azar de aterrar em debates televisivos, o vocabulário dos participantes resume-se a 40 palavras (10 delas erradas). E, em matéria de humor, inteligência ou elegância, desconfio que dois chimpanzés faziam melhor figura.

    E se em 1968 um único insulto determinou o destino de dois literatos, os debates de hoje transformaram o insulto no único argumento político tolerado.

    Se Buckley ou Vidal soubessem disso, talvez tivessem resistido melhor às tentações do ressentimento e da vergonha antiquada.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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