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    Jorge Coli

    Da representação

    01/05/2016 02h00

    Tenho para mim que mesmo os muitos torcedores pela saída de Dilma Rousseff não podem ter ficado indiferentes a tanta imbecilidade. Qualquer pessoa com um pingo de civilização levou um choque no domingo em que a Câmara decidiu a aceitação do impeachment. O deserto mental dos que votaram "sim" ofereceu-se como espetáculo.

    Falo aqui em imbecilidade, e não em imbecis. Para estarem lá, para ocuparem os cargos que ocupam, aquelas pessoas precisam ser muito espertas. Certamente não pensam em termos reflexivos e elaborados, mas sabem muito bem vencer no jogo dos interesses pessoais.

    Os que votaram pelo "não" empregaram, via de regra, argumentos racionais claros, traduzidos em linguagem bem articulada. Sei que estou generalizando, e faço aqui a ressalva. É possível encontrar, num lado ou no outro, algumas exceções. Elas, porém, não desfazem a impressão geral.

    O que sobressaiu foram os números de circo que o "sim" promoveu. Do elogio imundo a um torturador até a declamação sobre as ondas e o luar de Angra dos Reis, suponho que eles tenham alcances positivos. Devem atrair a empatia de muitos espectadores que, está claro, são também eleitores. Esse fato expõe os instrumentos intelectuais que a direita manipula para conquistar e manter-se no poder.

    Há vários deputados eleitos pelas seitas evangélicas: os programas de televisão aos quais elas se vinculam revelam o nível mental a que pertencem. Nada têm em comum com a grande e histórica tradição protestante, que foi capaz de suscitar um John Milton ou um Johann Sebastian Bach, elaborando elevada cultura.

    As manipulações demagógicas mais indignas, sejam elas de direita ou de esquerda, destinam-se aos menos favorecidos, cuja formação é precária. Ocorre que a direita, no Brasil, também não possui formas complexas de pensamento. Na política, é o império da fisiologia. No pensamento, é o nada.

    O PSDB votou pelo "sim", mas não se define como um partido de direita. Reúne, em seus quadros, intelectuais expressivos. Encontrar um pensamento conservador constituído onde quer que seja parece impossível no Brasil. Os poucos intelectuais com essa inflexão mostram-se rasos. Podem justamente seduzir pelo simplismo. Nunca vão além, limitando-se a posições provocadoras que divertem seus públicos.

    Essa ausência da elaboração complexa no pensamento conservador, ou mesmo neoconservador, casa-se perfeitamente com o descalabro mental a que assistimos no domingo. Se não existem verdadeiros intelectuais conservadores no Brasil, se nenhum movimento teórico nesse sentido se forma entre nós, é porque, fora alguns "entertainers" de plantão, nada disso é necessário. As manipulações instintivas e irracionais não são, de modo algum, privilégio da direita. Mas, para direita, no Brasil, apenas isso basta.

    Na enxurrada de dedicatórias repetitivas pelo "sim", a família se destacou. Declarações no avesso das convicções iluministas que levaram à Revolução Francesa.

    A família era importante naqueles tempos, a tal ponto que, nas parábolas didáticas inspiradas pela Roma Antiga, surgia como o supremo sacrifício diante do dever público. Esses valores eram aclarados por casos exemplares extremos. O grande pintor David encarregou-se de ilustrá-los em seus quadros militantes: "O Juramento dos Horácios" (1784) põe a defesa de Roma acima dos sentimentos familiares; "Os Litores Trazem a Brutus os Corpos de seus Filhos" (1789) mostra o desespero do cônsul romano obrigado a condenar à morte seus próprios filhos por terem conspirado contra a república.

    Mãezinhas, netinhos, sobrinhada e filhotes dos deputados põem em xeque o gesto de Brutus. É verdade que o rigorismo heroico do romano assusta pelas consequências a que podem levar os radicalismos e a aplicação desumana das leis. Enquanto a família, no oposto, faz os corações amolecerem porque paira numa aura de sentimentalismo venal.

    Na sociedade sonhada pelos iluministas, o público separa-se e se sobrepõe ao privado. No domingo do impeachment, quando um deputado oferecia seu "sim" aos filhos, à mãe, ao neto, ao sobrinho, nem sequer procedia a uma mistura entre público e privado. Mostrava antes uma completa ausência de consideração pelo público, por qualquer perspectiva pública. Eliminava simplesmente o princípio de bem público ao tratar o voto como questão privada.

    Sem lembrar nem mesmo os interesses corporativistas (os corretores imobiliários!), que são a perfeita negação de toda ideia de política coletiva, a projeção da intimidade familiar na Câmara anulou, por si só, o verdadeiro sentido da representação democrática.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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