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    Jorge Coli

    Bobagem na arte

    29/05/2016 02h00

    Van Gogh escreveu uma vez a seu irmão Theo: "Não é minha culpa se meus quadros não se vendem. No entanto, o dia vai chegar no qual se verá que eles valem mais do que o preço da tinta e da minha vida, bem magra em suma, que nós pomos nele".

    Esta frase soa hoje irônica e dolorosa, pois os quadros de Van Gogh valem dezenas de milhões de dólares. Ela enuncia também o valor imaterial da arte.

    O preço de uma obra não é medido pelo tempo de trabalho ou pelo custo da matéria empregada. Depende de algo que pertence ao campo das convicções. Essa imaterialidade tem, ou tinha, um limite. Um quadro de Van Gogh é concreto, e as emoções ou sensações que produz dependem dele. Desse modo, há um vínculo entre o objeto e esse inefável que custa tão caro.

    Ocorre que, hoje, o mercado das artes incorporou a pura imaterialidade.

    Não é de agora que as performances existem. Mais recente, no entanto, é a frequência com que são compradas e vendidas.

    Em 1959, Yves Klein inventou a Zona de Sensibilidade Pictural Imaterial. Cedia por vinte gramas de ouro fino uma dessas zonas, absolutamente invisível e impalpável, mas que ele garantia densa de sensibilidade. Para uma alma incrédula, ele estaria vendendo o nada. Passava um recibo. Como esse certificado poderia transformar-se, ele próprio, em objeto artístico e com consequente valor no mercado, o comprador tinha o direito de destruí-lo, se quisesse.

    Neste caso, Klein jogava a metade do ouro recebido no Sena. O ritual era testemunhado por um crítico ou um marchand, por um diretor de museu e, pelo menos, duas testemunhas: garantias artísticas. Tudo era simbólico, irônico, e continha a profecia do que anda acontecendo agora.

    Alguém adquire por R$ 25 mil uma farda de policial militar numa galeria. Ou melhor, não é a farda o objeto da aquisição, mas a ideia do artista que a acompanha: um performer deve vesti-la com o objetivo de instaurar um clima repressivo.

    Essa obra foi doada a um museu. Poderia não ter sido, e só quem a comprou teria então o direito de "realizá-la" onde quisesse. Animando uma festa, por exemplo.

    Adquire-se assim um contrato. Os museus, com esse tipo de obra, levam grande vantagem: não há questões de conservação ou de furto. Quanta economia. A obra, rigorosamente, pode mesmo nunca ter sido executada, nem jamais vir a ser.

    As performances tinham, outrora, uma vocação subversiva em relação às instituições, à sociedade, ao mercado. Ao serem transformadas em mercadoria, não abalam mais nada. É o imaterial vendido e comprado como Fausto cedia sua alma ao diabo, assinando um papel.

    Ao contrário do destino da alma no inferno, há um claro aspecto de frivolidade em tudo isso. Este ponto deve ser levado a sério.

    A frivolidade faz parte intrínseca da produção artística de hoje. A velha tradição romântica da seriedade própria às artes teve seu canto do cisne –belo e intenso– com a abstração nos anos de 1950 e 60. Rothko reuniu telas numa capela capaz de levar os espectadores à transcendência.

    Tenho muita dificuldade em imaginar uma capela solene e grave com telas de Beatriz Milhazes.

    Houve, portanto, uma reviravolta. Hoje, a frivolidade, o humor, a ironia, a surpresa, são alimentos para a criação artística. Mesmo quando a obra inquieta, mesmo quando repousa sobre sentidos mais profundos, sobre obsessões metafísicas, ela deve surpreender e provocar um sorriso de cumplicidade.

    Rothko quer que o espectador se aproxime da tela com respeito e seriedade, deixando seu espírito embeber-se calmamente da espiritualidade que ela emana. Ao contrário, Jeff Koons ou Takashi Murakami provocam um sentimento de diversão maravilhada; Ron Mueck ou Damien Hirst causam espanto e fazem sorrir, perturbando-nos ao mesmo tempo.

    Hirst incorpora o mercado como fonte estética: não há mais hoje o falso pudor romântico em relação ao dinheiro. Os criadores sabem que o mercado e a arte possuem uma relação simbiótica indissolúvel e que seria hipócrita buscar escondê-la.

    Logo, se o ricaço quer comprar uma performance como se compra um Van Gogh, se quer divertir seus convidados com ela, ou se apenas quer se sentir o dono de uma ideia criada pelo artista, não faz mais do que se integrar à sensibilidade de nossos dias.

    Alguns podem achar tudo isso uma bobagem. Talvez seja mesmo. É que a bobagem está no cerne da arte de hoje, assim como a solenidade pertenceu à arte de ontem.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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