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    Jorge Coli

    Para entender uma obra de arte, é útil observá-la ao lado de outras obras

    24/07/2016 02h00

    Divulgação
    Quadro "Moças Gregas Jogando Bola", de 1889, de Frederick Lord Leighton, para coluna de Jorge Coli na Ilustríssima
    "Moças Gregas Jogando Bola" (1889), de Frederick Lord Leighton,

    Nada melhor do que uma obra de arte para compreender outra. Os museus e exposições sugerem, de modo voluntário ou não, o exercício comparativo. Ali, as classificações da história da arte habitualmente impõem seus parâmetros.

    Arte do renascimento, impressionismo ou abstração; arte holandesa, espanhola ou russa; retratos na França do século 18, paisagem inglesa, abstração norte-americana; as naturezas-mortas de Van Gogh, a produção de Hubert Robert, e assim por diante. Nesses casos, a comparação reforça a ordem estabelecida do conhecimento.

    Porém, recentemente alguns curadores buscam embaralhar as cartas para, ao juntar obras fora desses critérios, despertar novas centelhas de compreensão.

    Dou um exemplo que já é histórico. No ano 2000, Robert Rosenblum organizou uma exposição aproveitando o motivo do centenário: "1900 - Art at the Crossroads" (arte na encruzilhada). Foi apresentada em Londres primeiro, depois em Nova York.

    A ideia era elementar, um ovo de Colombo: reunir obras expressivas vindas de todos os horizontes e criadas na proximidade dessa data simbólica. Critério cronológico simples que bastou para revolucionar a percepção. Ao dispor um Toulouse-Lautrec ao lado de um Eakins, um Matisse não longe de um Bouguereau, um Picasso, um Cézanne e um Carolus-Duran na mesma sala, Rosenblum revelou afinidades que ninguém suspeitava. As velhas oposições entre "vanguarda" e "academismo" se dissolveram.

    O exemplo dessa mostra excepcional não surtiu grande efeito de imediato. Hoje, ao contrário, quando tantos historiadores e críticos constituem uma verdadeira devoção a Warburg, talvez o maior dos comparatistas, surgem sinais de mudanças nessa direção.

    Quatro exposições, uma em Milão, três outras em Paris, indicam esse caminho, e mesmo algum descaminho. No Palazzo Reale de Milão, há um percurso intitulado "Umberto Boccioni (1882-1916): Gênio e Memória", celebração do centenário. Seu norte é a obra registrada como número um no catálogo: o "Atlante Delle Immagini". Boccioni colecionou, num atlas de grande tamanho, imagens de obras que o impressionaram. Faz pensar, irresistivelmente, no "Atlas Mnemosyne", de Warburg.

    Ocorre que Boccioni não se interessava apenas pela vanguarda. Juntou muita produção excluída pelos modernos com o título infame de "acadêmica".

    Estimulada pelo atlas, a curadoria multiplicou associações pertinentes em todas as salas. Introduziu, portanto, vários outros autores. Para dar uma ideia, o recinto que abriga a célebre "Formas Únicas de Continuidade no Espaço", de Boccioni, acolheu também "O Homem Que Anda", de Rodin, o "Caminhando", de Archipenko, pinturas de Picasso e vários estudos diversos. Como se vê, aquele caminhante futurista de Boccioni ficou em sintonia com a produção moderna que atentava para a captação dos efeitos dinâmicos. Mas eis que, no fundo, uma grande tela do "acadêmico" lord Leighton ("Moças Gregas Jogando Bola", de 1889) se insere sem ruptura nessas mesmas preocupações.

    A mesma coisa ocorre em Paris (Orsay), nas mostras sobre Charles Gleyre (o pintor da "barca", que tanto marcou Monteiro Lobato e que, em nossa cultura, se transformou no arqui-inimigo dos modernos) e sobre Henri Rousseau (que saiu de cartaz no último dia 17).

    A obra de Gleyre emerge ali num contexto coerente de artistas contemporâneos. Mais: demonstram-se também os seus vínculos com Puvis de Chavannes ou Renoir, que foi seu aluno. Assim, sua "La Charmeuse" (a encantadora) parece claramente um proto-Renoir.

    As ligações de Rousseau com Carrà são controláveis porque este último admirava muito o primeiro. Mas laços formais tão diretos como os propostos na exposição surpreendem. Ver, entre outras várias associações notáveis, "A Guerra", de Rousseau, diante do soberbo "A Igualdade Perante a Morte", de Bouguereau, espanta ainda mais. Malgrado os universos culturais que as separam, são duas telas irmãs!

    Nisso tudo, há um porém. O intervalo entre uma obra e outra deve ser a terceira margem do mesmo rio. Ora, a febre Warburg pode causar estragos quando se torna moda sem rigor. O Grand Palais, em Paris, apresenta uma mostra de livres associações com o título de "Carambolage" (a tradução aproximada pode ser ricochete). O "Atlas Mnemosyne" de Warburg está, em reprodução, logo na primeira sala. Seguem-se obras heteróclitas agregadas superficial ou obscuramente. Tudo vale, qualquer coisa vale. Como disse uma amiga: "Parece um Warburg bêbado". Para quem quiser ver, as imagens mencionadas estão em: goo.gl/bZVnJt

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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