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    Jorge Coli

    O mau gosto que se expõe como beleza, expressão e força

    16/10/2016 02h00

    Wang Zhao - 22.set.2016/AFP
    Visitante diante do quadro "Mask Series 1995 No 7" na exposição "Parcours: Zeng Fanzhi", em Pequim
    Visitante diante do quadro "Mask Series 1995 No 7" na exposição "Parcours: Zeng Fanzhi", em Pequim

    Um casal numa Ferrari, em alta velocidade, nas estradinhas sinuosas da Costa Azul, beirando precipícios. Acidente violento. A mulher sai atordoada, o marido ensanguentado.

    Diálogo.

    Marido: Minha Ferrari! Minha Ferrari! Minha Ferrari!

    Mulher: Como é que você pode estar chorando pela sua Ferrari! Não viu que perdeu um braço?

    Marido: Meu Rolex! Meu Rolex! Meu Rolex!

    Essa historinha é contada no filme "A Isca", de Bertrand Tavernier (1995). Concentra, de forma jocosa, a hipnose dos símbolos consumistas. Uma Ferrari, um Rolex são nomes imantados de desejo porque custam muito dinheiro. A simbologia monetária substitui o prazer duradouro por um triunfo raso de posse.

    Visitando Hong Kong pela primeira vez, a historinha não me saía da cabeça. A primeira impressão foi a de uma cidade transformada em shopping de luxo. Há shoppings em todos os lugares, muitas vezes ligados entre si por passarelas e outras passagens. As ruas exibem imensas telas animadas em que a moda desfila, em que os produtos suntuosos se exibem. Vitrines intermináveis expõem a vulgaridade dos Rolex, dos Armani, de todas as marcas de luxo. Nas ruas movimentadas pipocam patéticas ofertas de falsos Rolex e falsos Armani costurados num zás-trás por alfaiates hábeis: vá saber quais tragédias humanas se escondem na fabricação desses objetos.

    Converso com um jovem violoncelista num McDonald's. "Não há muita música clássica em Hong Kong", diz ele. Mas há concertos e óperas anunciados; há, sim, música clássica como há museus e antiquários de luxo. Talvez o que não haja seja um cotidiano da música clássica. As formas mais intensas da cultura podem ser reduzidas, elas também, a meras aparências. Assim, as obras se dissolvem no nominalismo, no símbolo social, ou seja, no nada.

    Bem longe de Hong Kong, em Pequim, há a 798 Art Zone, formada por um enorme conjunto de antigas fábricas militares ocupadas por artistas nos anos 1990. Agora, em plena gentrificação, é o paraíso do kitsch pseudoartístico. Entretanto, possui galerias importantes. Uma delas, a Ullens, expõe retrospectiva de Zeng Fanzhi, artista chinês de projeção internacional. Em 2013, a "Ilustrada" dedicava a ele um longo artigo com título sugestivo: "Artista mais rico da China, Zeng Fanzhi simboliza a nova arte do país". Tudo, no artigo, gira em torno de dinheiro.

    Suas telas mais antigas, seus hospitais, suas carnes mostravam alguma força expressiva, apesar da fatura sistemática (as carnes são muito menos poderosas do que os abates do paulista Wagner Willian). As últimas obras de Zeng Fanzhi denunciam, porém, a pior manipulação do mau gosto.

    São enormes quadros nos quais inclui, em grande escala, referências artísticas históricas, como a lebre de Dürer ou a cabeça do Laocoonte. Submerge essas imagens num grafismo banal.

    Duas gigantescas telas de 2010 medem 2,5 m x 10,5 m. Pertencem à coleção prestigiosíssima do hiperultrabilionário François Pinault, cuja sede está no Palazzo Grassi, em Veneza. O título é uma citação de Mao Tse-tung: esta terra é tão rica em beleza nº 1 e 2 ("This Land Is so Rich in Beauty").

    Numa, o incêndio na floresta; na outra, a floresta calcinada. Bons sentimentos ecológicos. Mas se bons sentimentos bastassem para produzir arte significativa, a Bienal de São Paulo deste ano, que envereda pelo mesmo sentimentalismo ambiental, não seria tão absurdamente insignificante.

    As cores lembram chiclete de bola e sundae de morango. Tudo é habilidosamente fácil. Minha jovem guia explica, com orgulho, que o mestre pintou essas obras gigantescas em 36 horas.

    Há também os retratos. São frívolos e impregnados de falso chique. Retrata-se a si próprio, a seus colecionadores, e também a Lucian Freud ou Francis Bacon: a comparação inevitável faz com que os retratos de Zeng Fanzhi se evidenciem ainda mais irrisórios.

    Não se trata do kitsch irônico, com recuo, ao qual a arte contemporânea nos habituou. Trata-se do mau gosto que não se reconhece assim, que se expõe como beleza, expressão e força, endossado e incensado em termos bombásticos por críticos.

    Mau gosto, porém, é o gosto do outro. Nesta hipótese, o erro está nos olhos de quem vê. Talvez esse kitsch que se nega seja uma forma expressiva de nosso tempo vazio, tanto na China quanto no resto do mundo: não é difícil encontrar exemplos comparáveis em outros lugares, no Brasil por exemplo. Mesmo a contragosto, seria talvez preciso aprender a considerar essas obras com seriedade. É o que pode oferecer a era do Rolex.

    Veja imagens de Fanzhi.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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