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    Jorge Coli

    Fanatismo e comédia na série de Woody Allen para a Amazon

    13/11/2016 02h00

    As velhinhas entusiasmaram-se com "O Pequeno Livro Vermelho" do presidente Mao. Decidiram fazer protesto sentado diante do alistamento para a Guerra do Vietnã. Irão sem roupas. Bem, não todas: uma diz que ficará com o sutiã e a calcinha. Outra, Rita Nedermann, muda seu nome para Rita Mohammed.

    Essa conspiração está na série "Crisis in Six Scenes" (crise em seis cenas), que Woody Allen dirigiu para a Amazon. A crítica, em sua maioria, torceu o nariz, autorizada pelo próprio autor, que declarou se interessar apenas pelo dinheiro.

    O personagem principal, S. J. Munsinger, é um escritor frustrado que gostaria de ser J. D. Salinger. É claro, não consegue. Trabalha no roteiro de uma sitcom –forma baixa de criação, mas "provavelmente um formato mais fácil para você", como lhe diz seu barbeiro.

    Jessica Miglio/Amazon Prime Video
    Woody Allen e Elaine May em cena de "Crisis in Six Scenes"
    Woody Allen e Elaine May em cena de "Crisis in Six Scenes"

    Assim, a sitcom exprime sua própria inferioridade diante de ambições literárias. No entanto, Woody Allen é um ser de carne e osso, enquanto Munsinger é um papel de ficção. Não se identificam: um tem grande sucesso, e o outro é um semifracassado. Allen sempre odiou esnobismos culturais, ridicularizando, filme após filme, os intelectuais pernósticos que se servem desse pedantismo como sinal de classe e, sobretudo, como instrumento para seduzir mulheres bonitas e deslumbradas.

    Woody Allen nunca fez distinção entre alta e baixa cultura, entre cultura de massa e de elite. Mas "Crisis in Six Scenes" traz uma situação nova para o autor: pela primeira vez, dirige uma sitcom para uma provedora de vídeos sob demanda. O rendimento não é pensado a partir de entradas vendidas, como no cinema, e necessidade de atrair público.

    Trata-se de uma encomenda em que os limites exteriores, e talvez também interiores –os de uma autocensura–, são menores. A Amazon, diz Allen, "insistiu e insistiu comigo por dois anos, melhorando a oferta cada vez mais, até que eu não pude me dar ao luxo de recusar". O contrato garantiu liberdade em todas as escolhas: número e duração dos episódios, período da trama, locações, elenco e conteúdo. O essencial é Woody Allen fazendo para a Amazon sua primeira série e reforçando a identidade intelectual que esse "streaming" assumiu.

    Foi uma autonomia com consequências. Elas são bem perceptíveis na escrita cinematográfica solta, com sabor de improviso. E ainda: deixou de ser preciso buscar protagonistas com glamour para atrair público. Woody Allen, com quase 81 anos, assume esse papel ao lado de Elaine May, de 84, atriz, comediante, roteirista, diretora. Ela introduz delicada imagem, com sua fragilidade, sua leve dificuldade na fala.

    Dessa autonomia decorreu também a incompreensão da crítica norte-americana. É verdade que os Estados Unidos produzem o melhor cinema do mundo e os piores críticos. Nesse caso, creio, foi assim: para uma sitcom, espera-se o riso imediato e grosso, como em "Brooklyn Nine-Nine" –série excelente, digna de todos os Emmys que levou e muito mais–, oposta a "Crisis in Six Scenes" tanto em sua gênese quanto em suas intenções. Woody Allen desestabiliza ao implicar, mescladas ao riso, mais profundidade e angústia do que se espera.

    A época é o final dos anos 1960, em pleno clima de ativismo político e manifestações contra a Guerra do Vietnã. Miley Cyrus, coadjuvante carismática ("você tem carisma!", diz-lhe alguém), fugitiva da prisão e disseminando suas convicções radicais de esquerda, irrompe na rotina de um casal de classe média. O único que não se deixa seduzir é esse pobre S.J. Munsinger, cuja covardia torna-se um formidável instrumento de lucidez.

    "Crisis in Six Scenes" repousa sobre inquietações importantes. Sem que elas venham à mente, o humor se dissolve. Por exemplo: os processos de sedução que levam ao fanatismo; a generosidade como fraqueza, abrindo brechas para que se infiltrem convicções simplórias, excessivas, mas poderosas e causadoras das piores ações; a dificuldade de compreendermos o momento em que vivemos e, mais ainda, de percebermos esses limites em nós mesmos.

    No campo da comédia, surge uma pergunta específica: é possível fazer humor com as tragédias políticas? Ninguém sublinhou a atualidade de uma fala como: "Eram tão bonitinhos os dois, discutindo como bombardear o Pentágono". Todos os personagens, com suas razões e paixões, são adoráveis. S.J. Munsinger resume: "Cuidado com os fanáticos, seja qual for a causa deles". Woody Allen acrescenta, de modo implícito: "Sobretudo aqueles fanáticos que estão dentro de nós".

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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