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    Jorge Coli

    Para quem Puccini pediria autorização para compor "Madama Butterfly"?

    02/04/2017 02h00

    Subjugar, submeter, impor, torturar são pulsões da tirania. Elas enfeixam a posse, o sexo e o abuso. A passagem entre dominar e violentar é sempre tácita. A sede de poder tem suas origens, próximas ou longínquas, na força bruta.

    Giacomo Puccini foi um compositor obcecado pela violência poderosa e pelo destino de suas vítimas. Na "Tosca" (1900), construiu um ato em torno de uma cena de tortura e da fúria libidinosa que toma um chefe de polícia. Com "Madama Butterfly" (1904) criou uma grande tragédia moderna. Tragédia da expansão e domínio americano no mundo.

    Patricia Stavis/Folha Imagem
    A soprano Eiko Senda em ensaio de "Madama Butterfly", de Puccini, no Teatro Municipal, em SP, em 2008
    A soprano Eiko Senda em ensaio de "Madama Butterfly", de Puccini, no Teatro Municipal, em SP, em 2008

    A história é contemporânea. Os japoneses haviam cortado relações com o Ocidente desde o século 17. Não queriam saber de trocas comerciais ou culturais com povos que consideravam bárbaros e grosseiros. Seus portos fecharam-se durante séculos, até que um almirante americano, muito ameaçador, entrou na baía de Tóquio, em 1853, com naves armadas, para entregar uma carta do presidente Pierce ao xogum.

    Na ópera, um tenente da Marinha americana se une a uma japonesinha de 15 anos. Vai embora. A jovem tem um bebê. Ao saber disso, o tenente volta, trazendo a esposa ocidental, para levar o filho consigo. Cio Cio San, a japonesinha, se suicida.

    "Madama Butterfly" opõe, musicalmente, uma cultura exótica tecida por sutilezas e finuras a um Ocidente brutal, desrespeitoso e predador. Nela, é o sexo o grande agente das infâmias e das opressões. Puccini toma a indignidade vulgar e destruidora de Pinkerton, o tenente, sobre Cio Cio San para ampliá-la em termos coletivos.

    Butterfly sofre a violação de seus sentimentos. Sua pessoa é irrelevante para Pinkerton, que não a compreende em nenhum momento. Os Estados Unidos, portadores da selvageria ocidental, assolavam, pela sua presença, antigas e profundas tradições que também não compreendiam. Em "Madama Butterfly", Puccini denuncia a violência, individual ou coletiva, acusando a arbitrariedade do forte sobre o fraco, denunciando o estupro de uma cultura por outra.

    As origens de "Madama Butterfly" estão no romance "Madame Chrysanthème" (1888), do francês Pierre Loti, que inspirou uma peça americana escrita por John L. Long e David Belasco. Foi dessa peça que Puccini tirou sua grande obra. Ela é, portanto, o fruto de uma mixórdia cultural. Esse Japão imaginário, fantasioso, fictício, foi criado por um francês, dois americanos e um italiano.

    Poderoso instrumento de consciência e de denúncia, "Madama Butterfly" não seria possível se obedecesse à teoria da apropriação cultural, hoje tão em voga. Como não seriam possíveis o "Otelo" de Shakespeare, ou "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso.

    Não é hipótese abstrata. "Aida", de Verdi, história de guerras e dominações, de indivíduos esmagados pelo poder e pela religião, foi cancelada na Universidade de Bristol, na Inglaterra, sob protestos, porque estudantes brancos representariam egípcios antigos e escravos etíopes, noticiou o "The Telegraph" no último mês de outubro. Não é um exemplo único.

    O que distinguiria a apropriação cultural da troca cultural seria a relação desequilibrada do forte sobre o fraco. É uma visão bem intencionada –daquelas boas intenções que entulham o inferno. Ocorre que as culturas e suas relações são muito mais complexas do que permite a conceptualização ideal.

    Não entro na discussão bizantina sobre o equilíbrio perfeito de forças entre duas culturas. Apenas menciono Susan Scafidi, citada pela escritora Lionel Shriver num discurso controverso, que define assim a apropriação cultural: "tomar a propriedade intelectual, o conhecimento tradicional, as expressões culturais ou artefatos da cultura de outrem sem permissão". Para quem Puccini deveria pedir autorização se fosse compor hoje "Madama Butterfly"? Qualquer resposta é evidentemente absurda.

    Na exclusividade cultural está o pressuposto de pureza. Nada deve ser misturado, para que se preserve o respeito a uma quintessência. Carregadas de um prestígio ambíguo, mas poderoso e intolerante, as noções de "puro", de "pureza", são, no entanto, traiçoeiras. Por exemplo, a história do século 20 mostrou que associar a elas a noção de raça humana conduz ao pior dos horrores.

    Todas as culturas, quaisquer culturas, fortes ou fracas, por mais esforço de isolamento a que se imponham, vivem e se energizam por contaminações, sempre. Daí brotam as dinâmicas vitais e fecundas. Felizmente, mesmo querendo, ninguém consegue vetar a mistura, a miscigenação e a impureza.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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