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    Jorge Coli

    Paul Schrader, 'Cães Selvagens' e o estilo transcendental no cinema

    30/04/2017 02h00

    Divulgação
    Troy (Nicolas Cage) e Mad Dog (Willem Dafoe) em 'Cães Selvagens'
    Troy (Nicolas Cage) e Mad Dog (Willem Dafoe) em 'Cães Selvagens'

    "Eu fiz alguns filmes importantes. 'Cães Selvagens' não é um deles." O jornal "The Guardian" tomou esta declaração de Paul Schrader como título para um artigo. Apesar disso, Schrader fala com afeto do filme.

    Faz muito tempo, escreveu "Estilo Transcendental no Cinema", livro no qual ensina que os filmes podem levar ao sagrado.

    Sua concepção da transcendência é ampla. Centrando-a na religião, penso ser possível restringi-la a duas categorias. Numa, o filme expõe o sagrado em modo narrativo. Os cineastas tornam-se agentes da fé, como Giotto (1267-1337), em Assis, contando a história de são Francisco. A narrativa não se abre para a transcendência mística, mas para o ensino e para o exemplo. "O Evangelho Segundo São Mateus", de Pasolini, tem essas características. Como também "Francisco, o Arauto de Deus", de Rossellini –Schrader assinala que, neste filme, Rossellini está perto da transcendência.

    Na outra, o filme busca atingir, pela mística da sala escura, esse universo superior das intuições sagradas. Reflete sobre as contradições e problemas trazidos por elas. Tomados pela espiritualidade, tais cineastas são também teólogos.

    Escolho dois dessa categoria: Robert Bresson e Martin Scorsese. Schrader embebeu-se de Bresson –um exemplo: seu "Gigolô Americano", transpõe, livremente, "O Batedor de Carteiras" de Bresson. Schrader foi roteirista de Scorsese, entre outros para seu filme mais "teológico": "A Última Tentação de Cristo". Ou ainda "Vivendo no Limite", parábola do homem como agente da salvação espiritual.

    A austeridade jansenista de Bresson volta-se para a graça e para a redenção da alma. Preocupa-se com a inocência e sua perda, como em "A Grande Testemunha". Neste filme, o burrinho Balthazar passa de mão em mão (o título original é "Balthazar ao Acaso"). Há muito de Baltazar em "Depois de Horas", de Scorsese.

    Bresson e Scorsese acreditam que a presença do mal no mundo tem origem demoníaca. Quem é o responsável pelos erros humanos? A resposta de Bresson está em um de seus títulos: "O Diabo, Provavelmente". Aqui o mal é um dado, que vem de Deus ausente.

    Scorsese não se contenta com isto. Quer saber como o mal se infiltra entre os homens –um de seus temas obsessivos. Quer saber como o mal age no mundo –do mal como tentação (o Mao Tsé-Tung, em "Kundun") ao mal como necessidade, sem o qual a redenção não é possível (o discurso de Judas em "A Última Tentação de Cristo"). Interroga-se sobre a natureza da fé, como no soberbo "Silêncio", filme tão complexo e tão pouco apreciado pela crítica.

    Os pais de Schrader eram duros calvinistas, praticando a violência como pedagogia. O pequeno Paul foi proibido de ir ao cinema até seus 17 anos. Mergulhou depois no mundo das drogas. Scorsese sempre foi católico fervoroso. Asmático, teve infância protegida: era levado ao cinema desde cedo porque não podia praticar esportes. Fortes diferenças que não impediram afinidades e colaboração.

    Schrader não cabe em nenhuma das categorias que propus. Se a transcendência religiosa é constante em sua obra, ela irrompe por caminhos tortuosos. Seu penúltimo filme, substancialmente metafísico, cujo título original vem de um poema escrito por Dylan Thomas (1914-1953), "Dying of the Light" ("Vingança ao Anoitecer"), foi massacrado (sob protestos do diretor) pelos produtores. O final foi transformado em uma patriotada indigna. "Cães Selvagens", o filme seguinte, feito como uma revanche, ficou sob o controle pleno de Schrader.

    Mostra uma América disfuncional, em que policiais não valem mais do que bandidos. Subterrânea, a inquietação religiosa perpassa desde o estupendo prólogo, com uma grande imagem do Sagrado Coração, numa casa toda cor de rosa em que ocorrerá um massacre abominável. O assassino, um Willem Dafoe assustador, vira demônio quando se olha no espelho. Mais tarde clamará pela redenção. Em Schrader, a violência se dá por preparações intensas. Nisso, é diferente de Tarantino, que a banaliza pela naturalidade.

    O final ocorre numa atmosfera de brumas luminosas (que formidável emprego das cores e das luzes nesse filme!). O bandido Troy (Nicolas Cage) como que se desmaterializa, imitando Humphrey Bogart. Um velho pastor negro e sua esposa, apanhados por acaso no turbilhão da história, morrem pelas balas da polícia.

    Não é preciso acreditar que Deus exista para admirar todas essas magníficas tentativas de sondar o mistério no qual nossa ignorância está imersa.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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