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    Jorge Coli

    'A Múmia' ensina que os desejos são obscuros e não dependem de perfeição

    23/07/2017 02h00

    Associated Press
    Tom Cruise em cena no novo "A Múmia"
    Tom Cruise em cena no novo "A Múmia"

    O rapaz e a moça passeiam pelo campo. É manhã de verão. Deparam-se com a carniça de um cavalo, as pernas viradas para cima. "Como as de mulher lasciva", pensa o rapaz. Enorme flor repugnante, aberta ao céu, com fedor tão forte que a moça cambaleia. Moscas e vagas enormes de vermes criam um estranho zumbido; as formas se desfazem. Uma cadela olha o casal com medo e com raiva, porque quer pegar um pedaço para comer. O rapaz diz então à moça:

    "Você, tão linda, tão feminina e graciosa, minha paixão, meu anjo, você será um dia como essa carcaça podre e nojenta. Diga então aos vermes que eu conservei a essência de meus amores decompostos".

    Este não é um episódio do último filme "gore", mas o resumo do poema "Uma Carniça", de Baudelaire, publicado em "As Flores do Mal", no ano de 1857. Cristaliza a sensibilidade decadente que, no século 19, uniu atração e repugnância. Atração pela repugnância e repugnância pela atração.

    Pensei no poema ao assistir ao novo "A Múmia", de Alex Kurtzman. A necrofilia do tema acrescenta o desejo pelo cadáver ao amor além da morte; nasceu com o romantismo e se desdobrou pelo cinema. Essa última versão está, porém, numa situação diferente.

    A Universal Pictures pretende reviver seu passado, quando foi gloriosa produtora de horror. No início da era sonora, seus estúdios filmavam sem parar, e com baixíssimo orçamento, uma série de prodigiosas obras-primas que firmaram monstros no imaginário coletivo, como Drácula ou Frankenstein.

    Diretores de alto poder criador, livres das coações impostas pelas produções milionárias, cunharam uma idade de ouro "gótica". Ela se concluiu nos anos 1950 com o gênio de Jack Arnold, cujos estupendos "O Monstro da Lagoa Negra" (1954) e "O Incrível Homem que Encolheu" (1957) –este último de profundidade metafísica– servem de fecho admirável.

    Depois, a Universal reanimou aqui e ali sua herança suntuosa, nem sempre com êxito. Agora quer estabelecer, a partir dela, um conjunto interligado de filmes. Deu-lhe o título "Dark Universe". Inventou uma vinheta especial.

    Nos primeiros tempos, era um aviãozinho que revelava, em volta da terra, o nome da produtora; atualmente é apenas Universal, em grandes letras, que avança sobre o planeta; para a nova franquia, as palavras Dark Universe giram em torno de um astro negro, eclíptico.

    Em 1932, Karl Freund transformou Boris Karloff no egípcio enfaixado ressuscitando com dignidade hierática. Agora, "A Múmia" é o primeiro título do "Dark Universe".

    Aproveitou do anterior apenas o princípio de uma punição originária e de um ser maligno quase indestrutível. Mudou o sexo da múmia, que surge com a beleza de Sofia Boutella.

    Nisto, o filme e o poema de Baudelaire se encontram. Sensualidade e formosura dissolvem-se, num vai e vem, em decomposição repugnante. O filme se enlaça com as obsessões do século 19, a começar pela atração medúsica da "bela dama sem piedade", devoradora de homens: o túmulo é precedido por uma gigantesca máscara feminina, de boca aberta, enorme, voraz. As relações entre ciência e magia, laboratório e ritual, também velho tema, adquirem espessura e convicção. Os efeitos especiais intervêm sem excessos, em boa medida.

    Tom Cruise, o galã da história, provoca, de maneira bem involuntária, um eco nas inquietações de seu filme. Com 55 anos, luta contra a velhice por meio dos processos de mumificação atuais, as cirurgias plásticas e outros tratamentos. Ele próprio múmia hollywoodiana, mergulhou nesse sonho desesperado de juventude eterna, de beleza eterna, de desejo eterno, que o filme exalta. Resiste às seduções baudelairianas da decomposição em seu próprio corpo, enquanto a moral da história, na tela, ensina que os desejos são obscuros e não dependem de traços perfeitos ou pele lisa.

    "A Múmia", primeiro opus "Dark Universe", foi absoluto fracasso de crítica e de público. Seus senões –e um deles, parece-me, é a presença deslocada de Tom Cruise– não excluem qualidades que são maiores.

    Buscando seguir a receita da Marvel, que mistura vários super-heróis na mesma aventura, "Dark Universe" quer conectar também seus monstros. Em "A Múmia", surge Dr. Jekyll, e o consequente Sr. Hyde. Um entrosamento difícil.

    O próximo da série será "A Noiva de Frankenstein", dirigido por Bill Condon. Ele foi responsável por uma pequena joia, "Deuses e Monstros" (1998), no qual fez a biografia de James Whale, o mítico diretor que, nos anos de 1930, inventou Frankenstein e sua noiva nas telas.

    Torço para que "Dark Universe" dê certo.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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