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    Jorge Coli

    Necessária em qualquer sociedade, denúncia pode se tornar linchamento

    20/08/2017 02h00

    Lee Miller/Reprodução
    Prisioneiros libertados remexem o lixo do campo de concentração de Dachau, Alemanha, em foto da americana Lee Miller de 1945
    Prisioneiros libertados remexem o lixo do campo de concentração de Dachau, Alemanha, em foto da americana Lee Miller de 1945

    Basta virar a pedra do anel para a palma da mão e pronto: você fica invisível. Pode então fazer tudo o que lhe der na cabeça, cometer todas as iniquidades e todos os crimes.

    Giges, o pastor que o descobriu, não teve escrúpulos. Empregou esse encanto para matar o rei, casar-se com a rainha e tornar-se poderoso. A história do anel de Giges é contada com muito mais detalhes em "A República", de Platão. Serve para discutir este ponto: que ser humano, dotado de tal dom sobrenatural, permaneceria justo? Quem não o empregaria em benefício próprio, obtendo poderes, riquezas e, mais ainda, apesar de injusto, parecer justíssimo, figurar como o mais exemplar dos homens?

    Ah! se os olhos pudessem matar, escreveu Machado de Assis. Explica, em "Dom Casmurro": "Um dos erros da Providência foi deixar ao homem unicamente os braços e os dentes como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bastavam ao primeiro efeito. Um mover deles faria parar ou cair um inimigo ou um rival, exerceriam vingança pronta, com este acréscimo que, para desnortear a justiça, os mesmos olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a vítima". Sábia Providência, pois o que seria da humanidade se os olhos pudessem matar?

    Houve momentos na história em que isso foi possível e de maneira assombrosa. Era quando muitos possuíram o anel de Giges e matavam com os olhos. Um desses momentos, o pior deles, sou tentado a dizer sem propor um concurso de horrores, ocorreu sob o nazismo. Surge descrito em uma obra que descreve esse pesadelo real. Seu autor é Laurent Joly: "Dénoncer les Juifs sous l'Occupation" (denunciar os judeus sob a ocupação, 2017).

    Joly é um especialista no estudo do antissemitismo. Trabalha de modo técnico, com dados exatos, e seu livro recusa qualquer efeito eloquente. Trata de estatísticas, de números gerais e seleciona também certos casos como típicos. Nenhuma ênfase, nenhuma retórica. Mas essa objetividade fria torna tudo ainda mais assustador. No término das análises de caso, quase sempre a mesma frase conclui: "não voltou da deportação". Sinistros epitáfios.

    Sua investigação delimitou a região parisiense durante a ocupação alemã. Junto às perquisições sistemáticas, às investidas coletivas que eram organizadas pelas autoridades de então, havia as acusações pessoais, anônimas ou não, que eram enviadas à polícia, à Gestapo, ao Comissariado Geral das Questões Judias. Ou eram encaminhadas aos jornais de extrema direita, férteis em apelos do tipo: "Franceses, ajudem-nos a desmascarar o Judeu". Imprensa que amplificava o antissemitismo expondo nominalmente tantos infelizes.

    A mentalidade do delator fascina Joly. A partir de cartas, busca seus motivos e suas justificativas. Alguns são movidos por convicções políticas, outros por legalismo, ou seja, por sentimento de dever perante a lei. É a denúncia por "boa intenção", a de limpar a sociedade, quando o denunciante sente-se feliz cumprindo seu dever.

    Outros agem por ódio, pelo que o autor chama de "ressentimento patológico". Porém, bem mais da metade dos casos estudados eram provocados por sórdidos interesses materiais e vinganças pessoais. O marido que tem uma amante judia; o cabeleireiro que tem um concorrente judeu na mesma rua; o sócio –muito amigo de seu parceiro judeu, com as famílias passando juntas o fim de semana– que deseja abocanhar a parte do outro; o médico prestigioso que quer impedir o casamento "misto" de seu filho; o fotógrafo indignado porque a cliente recusa uma cara moldura; a despeitada que não suporta as roupas elegantes e o cachorrinho chique da vizinha.

    Quanta satisfação em eliminar essas pessoas incômodas. Milhares de judeus de todas as idades, homens e mulheres, foram assassinados por denúncias assim. "Não voltaram da deportação", como escreve com pudor Laurent Joly.

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    Na sociedade em que o anel de Giges se torna legalizado, em que os olhos, a simples observação, podem condenar à morte, é a sordidez que sobressai. Nem todos os seres humanos são sórdidos, felizmente, mas o anel de Giges é a prova dos nove.

    Esta situação do mais extremo horror revela as piores pulsões inumanas, desesperadas por emergir. Acusar, denunciar, são atos infelizmente necessários em qualquer sociedade. Mas é tão fácil tornarem-se sistemáticos, transformarem-se em patrulhamento, em linchamento moral, em caça às bruxas, em paranoia militante, trazendo consigo a volúpia da injustiça pelas próprias mãos.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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