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    Jorge Coli

    Mostra do Masp sobre sexualidade supõe que qualquer nu liga-se ao sexo

    12/11/2017 02h00

    Post-porn é o que eu chamo, para meu uso pessoal, de pornô-cabeça e resumo assim: emprego da pornografia como meio de reflexão. Os debates em torno disso têm mais de 30 anos, mas atingiram um paroxismo nas artes dos últimos tempos.

    Artistas e exposições que tomam a sexualidade como tema andam surgindo por todos os lados, e o Masp decerto não quis ficar na rabeira. Inventou a mostra intitulada "Histórias da Sexualidade", aberta mês passado.

    A qualidade de várias das obras exibidas é muito alta, começando por aquelas que pertencem ao acervo do museu. A estas se juntaram outras, vindas de várias instituições e coleções particulares.

    Mas o tema foi tratado de modo superficial. É verdade que o título autoriza juntar coisas sem grande rigor. Para ordenar um pouco, a curadoria estabeleceu tópicos que lembram o índice de algum manual: corpos nus, totemismos, religiosidades, voyeurismos, linguagens, performatividades de gênero e assim por diante.

    A mostra pinça exemplos aqui e ali. Um pouco de cerâmica pré-colombiana, um pouco de Mapplethorpe, um pouco de Carlos Zéfiro, sem que nenhum desses pouquinhos conduza a qualquer aprofundamento.

    Algumas obras estão lá sob pretextos forçados, como o autorretrato bigodudo de Gauguin porque ele se interessava pela androginia, ou a maravilhosa "Bailarina de 14 Anos" de Degas, ilustrando o voyeurismo —quando o Masp possui a coleção completa dos nus femininos em bronze desse autor, raramente mostrada.

    A moda atual de expor produções de tempos históricos diferentes, comparando-as, é fecunda em certos casos. Aby Warburg foi o genial teórico que teve a ideia de fazer uma história da arte sem palavras em seu "Atlas Mnemosyne", no qual justapõe apenas imagens, fazendo intuir formidáveis relações.

    A exposição do Masp sugere um Warburg simplificado, escolar e classificatório. Ela está vazada em museografia saturada, que dificulta a concentração.

    A exposição não se deu conta de que existiram vários momentos na história em que as artes se vincularam fortemente ao sexo e, de modo voluntário ou não, os ignorou.

    Nada trouxe do decadentismo baudelairiano, por exemplo: entre tantos outros, nem Gustave Moreau, Aubrey Beardsley ou Félicien Rops, este com suas obscenidades blasfemadoras. E nada de surrealismo!

    Como imaginar histórias da sexualidade no campo das artes que ignore Delvaux ou Masson, as colagens de Ernst (na falta de telas) ou "A Pintura em Pânico", de Jorge de Lima, para ficar apenas em alguns poucos escolhidos ao acaso? Ok, apontar lacunas é fácil. Mas uma perspectiva minimamente histórica teria proporcionado alguma profundidade e coerência a um conjunto bem desconexo.

    Tanto as roupas quanto a nudez podem ser marcadas pela sexualidade. Há roupas eróticas como há nus castos, e vice-versa. No Masp, a mostra supôs que um nu, qualquer nu, por si só, liga-se ao sexo.

    Nisto —de modo involuntário, assim espero— coincide com os conservadores de hoje em dia (porque os antigos pelo menos sabiam da existência do "nu artístico" que se vincula à beleza, não ao sexo).

    Tanto é que esses novos moralistas invadiram o MAM-SP por causa daquela performance em que a nudez era tão inocente. No caso do Masp, é difícil achar que "As Banhistas" de Manet ou o nu pequenino pintado por Flávio de Carvalho, com formas mal e mal sugeridas, tenham algo a ver com sexualidade.

    No entanto, o problema que tem chamado mais a atenção na mostra surgiu de modo imprevisto. Imagino que, para negociar obras e obter empréstimos, a preparação deva ter exigido ao menos entre um ano e meio e dois.

    Ora, as mentalidades mudaram muito rapidamente e a exposição começa no momento exato em que o moralismo no Brasil vem animado por uma histeria sem precedentes, vinculando-se a um futuro político de prognóstico aterrador.

    Em meio a tantas manifestações contra a cultura e contra os museus, o que deveria ser uma exposição radical chique virou uma batata quente. Daí, o Masp recuou e proibiu para menores a exibição. Até o catálogo —livro de imagens com poucos textos curtos e simplistas— vinha com tarja proibindo a venda para os inocentes com menos de 18 anos!

    E agora, graças à lúcida iniciativa do Ministério Público Federal, o museu voltou atrás, liberando a entrada com o acompanhamento dos pais: vexatória contradança.

    A gravidade destes fatos não é circunstancial, porque significam um sintoma grave de autocensura. O MPF, por felicidade, tirou a camisa de força com que o Masp havia vestido sua própria inteligência.

    jorge coli

    É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify). Escreve aos domingos, uma vez por mês.

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