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    Josimar Melo

    Voltar para casa era uma viagem

    01/10/2015 02h00

    Na minha juventude, voltar a São Paulo, depois de viagens que em geral eram mais longas do que as de hoje, tinha um efeito quase lisérgico ao percorrer os caminhos que levavam do aeroporto (ou da rodoviária) até minha casa.

    Por alguma razão, a paisagem parecia nova. As ruas, tão conhecidas, que se sucediam nas retinas em geral anuviadas pelo cansaço, exalavam tons de cores, formatos, detalhes que de alguma forma insinuavam não serem mais exatamente as mesmas que havia deixado para trás semanas antes.

    O que a rigor é a pura verdade. A vida que passou por essas ruas outro dia não voltará; é claro que a cada segundo o tempo enxota o presente para o passado.

    Parece que eu sentia, mesmo não estando ao alcance dos olhos, que ao longo daquele trajeto, nos últimos dias, alguém havia morrido num sobrado, poeira se acumulara numa sacada, amores se juraram atrás de uma janela enquanto outros terminaram na casa vizinha, amizades nasceram na mesa daquele bar para serem esquecidas ao último suspiro da ressaca.

    Era uma sensação gostosa, de encontrar uma cidade nova, diferente da que eu havia deixado.

    Acabo de chegar de uma viagem mais longa que o habitual (para meus padrões), e me vi indagando a mim mesmo se, com esse lapso maior, o efeito da minha juventude iria se repetir.

    Fui a cidades escancaradamente antigas. Ao longo de duas semanas, estive em Milão (para fazer apresentações sobre gastronomia no pavilhão brasileiro da Exposição Mundial) e, de lá, direto para a Cidade do México (para reuniões e cerimônia do prêmio 50 Melhores Restaurantes da América Latina). Ambas cidades cuja arquitetura teima em mostrar que estão ali há centenas ou milhares de anos.

    Será que na volta ao presente, quando chegasse a São Paulo, aquela sensação de achar que presenciaria algo novo voltaria?

    Nada feito. Ruas e avenidas não deram qualquer sinal de renovação. Provavelmente porque nada de muito relevante ou visível mudou.

    Antigamente, voltar era parecido a ir, como viajar, porque o lugar aonde eu chegava parecia ser novo.

    É uma sensação deliciosa a de encerrar a viagem como quem começa uma outra. Mas hoje já não sinto mais isso; estou mais afinado com o lugar-comum que diz que o melhor da viagem é voltar pra casa. Não, não é pra tanto; mas que é reconfortante voltar, isso é. Especialmente se sacamos que, mesmo aqui, de volta para casa, a viagem ainda continua.

    *

    Em Milão, fui conhecer o novo e já muito falado restaurante Tokuyoshi (via S. Calocero, 3), do chef homônimo, um japonês que trabalhou anos ao lado de Massimo Bottura. Ele define seu restaurante como de "cozinha italiana contaminada" -forma divertida que descreve seus pratos italianos com influência japonesa. Cada prato vem com um copinho com alguma coisa (um caldo, um molho leve) independente das bebidas. São pratos de fundo tradicional: tagliatelle com molho branco, espaguete com vôngole, pombo assado, muito bem executados.

    Mas não resisto a sempre visitar também um local mais popular, de cozinha tradicional e familiar. Desta vez foi o Latteria San Marco, em Brera (via San Marco, 24). Pequenino, não aceita reserva (nem qualquer cartão); tocado pelo casal Maria (na sala) e Arturo (na cozinha), nos serviu sopa de feijão com couve, espaguete ao alho e óleo com aliche e peperoncino, ovo com manteiga e bottarga, polpettone com batata espanhola (confitada). Um achado. Pena só ter um vinho, da família -e ruim.

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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