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    Josimar Melo

    Vida suspensa no casulo

    10/12/2015 02h00

    Sempre senti algo de mágico no preciso momento em que cruzava o controle de passaporte antes de viajar. Sempre cheguei atrasado ao aeroporto, sempre esbaforido, cheio de tarefas incompletas, tentando resolvê-las até o último segundo.

    Mas houve tempo em que não havia telefone celular. Nem laptop com wi-fi. Então, depois do apressado check-in, restava cruzar a Polícia Federal –e pronto: Inês era morta, e o que não havia sido feito a tempo já não o seria mais. Uma súbita paz me tomava. Era relaxar, abrir o livro, beber algo e aguardar a chamada final.

    Ah, algo ainda se podia fazer, um derradeiro elo com o mundo frenético que estava ficando temporariamente para trás: buscar um orelhão (sabe? lembra? telefone público –nas salas vip era de graça) para ligar para a família e se despedir, algo que apenas uma vez não consegui fazer porque o sujeito baixinho à minha frente não largava o aparelho, tantas vezes repetia, como um mantra, "Fica com Deus, Assíria" (o baixinho engravatado era o Pelé).

    Ainda hoje prezo muito os momentos em que posso enclausurar-me por algumas horas no isolamento daquele casulo aéreo. Claro, detesto o desconforto das viagens –que pode mudar de intensidade, mas sempre existe, por mais luxuosa que seja a classe em que voamos. Mas dado que o desconforto é inevitável, pelo menos tento tirar o máximo proveito daquele momento de vida interrompida.

    Para começar, prefiro (e sou a única pessoa que conheço) fazer os longos voos durante o dia. Uma das razões é particular: sempre durmo muito mal no avião, qualquer que seja a classe do bilhete (claro, na econômica, dorme-se pior que na primeira classe; mas, no meu caso, ao contrário de conhecidos que dormem sentados em qualquer lugar, nunca consigo relaxar e descansar, seja qual for o conforto da cadeira).

    Resultado: em uma longa viagem de avião, quando nos horários habituais, costumo perder a noite, lutando contra o cansaço e tentando dormir, e ainda perder boa parte do dia seguinte, tentando me recuperar, o que é particularmente cruel quando a viagem é a trabalho e já na chegada há compromissos à espera.

    Já viajando num voo diurno, no lugar de perder uma noite, ganho o dia: dez horas de isolamento, sem telefone, campainha, e-mail. Tempo para se concentrar lendo e escrevendo, vendo um filme, tirando uma soneca, ouvindo música.

    Como eu disse, antes esse estado de vida suspensa começava exatamente na checagem do passaporte na Polícia Federal, momento equivalente à entrada das primeiras gotas de Dormonid veia adentro antes dos exames médicos que exigem sedação (aquela hora em que nos mandam contar até dez e já no três o mundo gira enquanto nos traga num gentil rodamoinho para o sono profundo –mas só se for Dormonid: um tal Propofol que a ciência anda nos impondo é brutalmente instantâneo, sem qualquer romantismo lisérgico).

    Assim era no passado. Depois, o excesso de conectividade instantânea trazida com o passar do tempo empurrou minutos à frente o instante mágico daquela paz súbita. No lugar de se impor no momento em que, passada a polícia, não voltamos mais atrás, teve que ser adiada para quando se fecham as portas do avião –pois até lá os celulares, tablets e laptops nos mantêm com o cordão umbilical atado aos compromissos que ansiamos deixar para trás.

    Pelo menos era assim até que começaram a implantar conexão de telefone e dados nos aviões, para que se possa telefonar e "navegar" no ar. Por sorte ainda são serviços caros, e pouco usados; mas por quanto tempo resistiremos –resistirei– a eles?

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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