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    Josimar Melo

    Os céus de Colorado

    14/04/2016 02h00

    Ninguém conhece os céus do Colorado como eu.

    Na primeira vez em que lá estive foi para visitar a cidade montanhosa de Aspen, um dos principais destinos de esqui dos Estados Unidos. Mas era pleno verão, e os turistas se dedicavam a trilhas na floresta e trekking na montanha.

    Menos eu. Estava lá para conhecer o festival gastronômico Aspen Food&Wine Classic, com grandes nomes da área em aulas com centenas de ouvintes (naquele ano, Julia Child, Jacques Pepin, Marcella Hazan, Praticia Wells e muitos outros).

    As autoridades de Aspen não são bobas. Durante o inverno, o local é tomado por amantes do esqui (inclusive brasileiros, muitos com casas lá ou na vizinha Snowmass), além de celebridades dos EUA.

    Mas a cidade não enche os cofres apenas no inverno. No verão, inventa promoções –como semanas de artes, música, gastronomia– para aquecer o turismo. Como no verão o local é igualmente belo (o branco da neve dá lugar ao verde da floresta), e os preços desabam para menos da metade, o sucesso da empreitada é garantido.

    Além disso, ao contrários de outras estações de esqui do Colorado, Aspen não é meramente um condomínio ou complexo hoteleiro, como por exemplo Beaver Creek, ali perto. É uma cidade de verdade, dos tempos do faroeste, com minas de prata, ruas antigas e velhas construções hoje ocupadas por bares e restaurantes (uma atmosfera que o charmoso hotel Little Nell recuperava, quando estive lá há 20 anos).

    Mas também fui algumas vezes ao Colorado no inverno, para esquiar. Ou melhor: tentar esquiar. E, de todas as vezes, a que melhor lembranças guardei foi da última, quando alugamos um grande apartamento em um condomínio para turistas em Beaver Creek.

    Subi a montanha para esquiar somente no primeiro dia. Único em que empenhei minhas calorias em horas paramentando filhos com casacos, engenhocas de aquecer mãos, botas pesadíssimas, esquis gigantes e desajeitados –tudo isso antevendo, desanimado, que depois repetiria todo o processo com alguém mais desajeitado ainda: eu mesmo.

    Depois, toca a fazer fila, subir montanha, caminhar tropegamente até a pista, para desabar por alguns poucos minutos antes de praticamente começar tudo de novo.

    E tudo isso para quê? Admito que nos poucos momentos em que, principiante e incompetente, consegui deslizar livremente montanha abaixo (trechos, claro) e me sentir solto do chão, sem atritos com a terra –aqueles momentos de condor em voo livre produziram uma lisérgica adrenalina.

    Mas foram poucos momentos. Depois do primeiro dia nessa viagem, passei a me despedir toda manhã da família, que saía feliz com suas traquitanas montanha acima.

    Eu ia para o Whole Foods e lojinhas de especiarias comprar mantimentos. À tarde, os familiares encontravam a cada dia um menu diferente para restaurar as forças. E eu fumava feliz meu charuto depois da lauta refeição (somente uma vez o detector de fumaça acionou um constrangedor alarme de incêndio).

    Cozinhar e comer no frio, experimentando produtos que não conhecia, alimentando a família diariamente, foi mais gratificante do que todo dia subir a montanha. Afinal, lá em cima, incompetente e trôpego, passava mais tempo estatelado no chão mirando as nuvens ("como levantar discretamente sem tanta humilhação?"), do que, ereto, olhando com dignidade o horizonte.

    Só me sobrava a convicção de que, ao contrário daquela horda de esquiadores, do meu ângulo estratégico com as costas grudadas na neve, ao menos ninguém conheceu os céus do Colorado como eu.

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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