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    Josimar Melo

    Na ditadura, meu coração palpitava na fila da alfândega. E agora?

    15/09/2016 02h00

    Valentina Fraiz

    Suava frio ao entrar naquele corredor em cujo final uma escolha decisiva seria feita. O agente era uma rocha gelada ante as pessoas de ar abatido, pele e roupa amarrotadas, que se arrastavam para destino incerto. Naqueles poucos segundos que pareciam dilatar-se em horas, meu coração palpitava diante do perigo, as pernas fraquejavam, o cérebro zunia com flashes dos diferentes cenários possíveis.

    Metros à frente, o policial mantinha-se imóvel. Quase impassível, não fossem seus olhos escrutinando cada alma –e, para além da alma, sinais inconfessos de culpa. Era a chegada. Ou o fim da linha?

    Assim eu me sentia quando voltava ao Brasil, na fila da alfândega, tentando fazer-me invisível, ou ao menos visivelmente inofensivo, entre os que optavam pela seta de "nada a declarar". Torcia ansioso para que pudesse me safar no momento decisivo –o de pressionar o botão que selaria a sorte entre a luz verde ("pode passar") e a vermelha ("abra as malas!")– e que o policial não me detivesse mesmo assim.

    Não que trouxesse qualquer muamba, no sentido mais convencional do termo. Nada de drogas, gadgets eletrônicos, 30 calcinhas idênticas. Mas, naqueles anos de ditadura, eu trazia sempre literatura "subversiva": textos marxistas, revistas socialistas, livros proibidos (no Brasil) e, o mais grave, documentos que indicavam minha filiação internacional a movimentos pelo fim do governo militar.

    Para evitar problemas, valia inclusive colar capas de livros inofensivos sobre perigosas edições trotskistas; ou esgueirar folhas soltas, de conteúdo proibido, entre páginas de revistas em quadrinhos como "Paulette" –a deliciosa e devassa francesa criada por Wolinski (recentemente assassinado no estúpido atentado contra o "Charlie Hebdo" em Paris).

    Finda a ditadura, meu coração bateria com menos temor diante dos sabujos da Polícia Federal, mesmo quando cometia pequenos crimes como não declarar alguns nacos de presunto ou de queijo (o que nem é mais proibido).

    De resto, tornei-me cidadão exemplar. Se trazia um laptop, entrava solitário na "não fila" de bens a declarar, pronto a pagar o imposto e tolerar a desconfiança dos agentes, sempre suspeitando do preço declarado, incrédulos por terem diante de si um elemento honesto.

    O episódio mais curioso em alfândegas aconteceu no aeroporto de Palermo, poucos anos atrás, quando fomos gravar na Sicília um episódio do meu programa "O Guia", do NatGeo. Vínhamos de uma gravação sobre presuntos na Espanha, onde ganhamos vários produtos da renomada marca Joselito.

    No aeroporto, me sentia totalmente dentro da lei, até que os cães (com seus devidos soldados armados até os dentes, como em todo aeroporto italiano) nos cercaram, acusadores e excitados. Explicado: treinados para encontrar cocaína ou pólvora, nada apetitosas, os cães enlouqueceram ao farejar linguiças de primeira.

    Hoje, depois dos anos de pânico na ditadura, ou do susto pelo cerco canino, tornei-me mais tranquilo nas alfândegas. Mas... Por quanto tempo?

    O novo ministro da "Justiça" é o que reprimia brutalmente as manifestações em São Paulo (exceto as que apoiavam o golpe), e declarou-se de cara contra a independência da procuradoria-geral da República instaurada no governo Lula (e responsável pela denúncia dos corruptos, inclusive do PT).

    E antes mesmo da posse definitiva, o sinistro presidente biônico do Brasil recriou o nefasto Gabinete de Segurança Institucional, que já começou o trabalho sujo no encalço dos movimentos de oposição.

    Se depender desses paladinos do passado negro, volta o risco de que pessoas portando literatura (e ideias) a favor da democracia passem a ser novamente cerceados em nossos aeroportos. E nas ruas. E por cães de duas patas.

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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