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    Josimar Melo

    Do café em Paris à caipirinha em casa, eu mesmo me dou 'welcome drinks'

    24/11/2016 02h00

    Muitos hotéis recebem seus clientes ou convidados com um "welcome drink", um drinque de boas-vindas. Às vezes, champanhe, que é o mais clássico. Em outras, algum coquetel relacionado ao lugar ou a algum acontecimento.

    Da minha parte, tenho uma interpretação muito particular do "welcome drink": ao chegar ao país, peço logo uma bebida que me conecte com o espírito do lugar. Não espero que me ofereçam: eu mesmo providencio minhas próprias boas-vindas.

    Em Londres, é de lei pedir uma Guinness estupidamente... fria (não gelada). Com aquela espuma de causar inveja a Ferran Adrià. Embora feito há séculos na Irlanda, aquele ouro negro saindo das torneiras de um pub tem o poder de me colocar espiritualmente na Inglaterra.

    Sabendo de minha mania, uma anfitriã, certa vez, me surpreendeu: quando eu ia embora da cidade, encontrei no meu quarto do hotel seis garrafinhas de Guinness –por algum motivo, nunca tinha tomado a bebida em garrafa.

    A bebida de outro país vizinho, o uísque escocês, também tem poder parecido, mas costumo deixá-la para mais tarde, depois que a abundante cerveja, jorrando garganta abaixo, tiver amaciado o caminho.

    Valentina Fraiz

    Na França o drinque inaugural deveria ser vinho. Mas, por velhos hábitos, o que me faz sentir mesmo em Paris é entrar num café qualquer e pedir uma popular mistura local, o café-calva, que consiste num café expresso acompanhado por uma tacinha de Calvados, típico destilado de maçãs da Normandia.

    Mas acho que, se a pedisse num restaurante estrelado, a mistura não teria o mesmo efeito. Para funcionar, é preciso um balcão gasto com franceses consumindo seu ballon (taça arredondada) de vinho tinto barato. O café não será grande coisa, sei, o que só reforça a necessidade da aguardente para as papilas.

    Meu ritual titubeia se o desembarque for no sul da França, onde seria de lei tomar um pastis –licor de anis açucarado e enjoativo. Por ali ele é geralmente diluído em água, o que num passe de mágica o transforma de translúcido em leitoso.

    Concordo que o gosto anisado e o gelo produzem um efeito refrescante, mas ainda assim não me seduz. É o mesmo problema nos países do Oriente Médio e na Turquia, que têm o semelhante arak (com nomes que variam). Então, confesso: ao menos no sul da França, costumo dar uma roubadinha, ficando no vinho rosé, também típico da região.

    Em Nova York, é inevitável: peço um manhattan, que em muitos lugares é feito com "bebida nacional", ou seja, bourbon –o que me leva a causar algum embaraço ao pedir que usem o uísque canadense da receita original (há grande diferença de paladar entre os uísques de milho, caso do bourbon, e os que levam adição de centeio, como os do Canadá).

    Em Milão ou Turim, na Itália, peço sempre um negroni, desde muito antes de o drinque virar moda no Brasil, onde também o peço em restaurantes italianos. Ele me faz bem em toda a Itália, mas produz especial impacto nessas duas cidades. Afinal, dos seus três ingredientes básicos, dois vieram de lá: o bitter Campari é milanês e o vermute tinto é típico da região de Turim.

    Não por acaso existe também um coquetel chamado milano torino, com base nesses dois ingredientes (adicionando-se o gim, chega-se à receita do negroni).

    E assim vou bebendo minha volta ao mundo. Na Alemanha, galões de cerveja produzida sob as estritas regras da lei da pureza. Na Holanda, uma genebra (parente do gim, igualmente aromatizada com zimbro), de preferência uma oude jenever.

    No Chile e no Peru, um pisco sour. Deixo que eles briguem pela paternidade do drinque, enquanto brindo aos dois. E, de volta ao Brasil, seja num balcão de bar, num restaurante ou em minha casa, mergulho com prazer redobrado e saudoso numa caipirinha.

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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