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    Josimar Melo

    Noruega oferece aurora boreal, cabeça de bacalhau e revista 'Josimar'

    22/06/2017 02h00

    Valentina Fraiz

    Ditaduras sempre me deram alergia. Por lindo que seja o país, por vibrante que seja seu povo, me angustia saber que estou em território de autocratas mantidos pela força.

    Da Arábia Saudita à Coreia do Norte, a coisa me enerva. A ditadura brasileira não só me enervou, me atingiu. A da Argentina me dava calafrios -o pânico começava no aeroporto militarizado. A cubana estragou delícias como ver pessoas saudáveis e letradas, provar charutos e mojitos, sentir a música no ar, até ligar a TV com o interminável congresso do partido e o stalinista barbudo cortando a palavra dos próprios companheiros para apartes de horas.

    Não os tolero. Mesmo quando nascidos de uma linda revolução como a cubana, ou quando teoricamente eleitos -pois que tranquilidade traria a meus antígenos morais saber que certo presidente é eleito, se prendeu (ou matou) toda a oposição? Caso do tirano mencionado por minha colega Mariliz Pereira Jorge, aqui na Folha, a respeito da Copa do Mundo na Rússia:

    "Outra notícia bastante perturbadora (...) são as denúncias de violação de direitos humanos. A revista "Josimar", publicação norueguesa especializada em futebol, denunciou a presença de escravos norte-coreanos na construção da Arena Zenit (...). Direitos humanos, sabemos, não são lá muito o forte da Rússia. Mulheres, gays e negros aparentemente são humanos de segunda categoria."

    Copas do Mundo -como praias, museus, restaurantes- são bom motivo para ir a qualquer lugar, independentemente do regime político. Ainda assim, tenho calafrios de pensar que pisarei em solo sem liberdade alguma. Ainda por cima com trabalho escravo rolando na boa, como apontou a revista... "Josimar"?? Espera. Para a fita. Volta um pouco. A fonte da Mariliz é uma revista norueguesa de esportes chamada... "Josimar"??
    Na minha cabeça a fita começa a voltar até o longínquo ano de 1986. Quando meu estranho nome ganhou o planeta graças ao futebol -ou a dois golaços do lateral Josimar na Copa do México.

    Fama que, numa carreira irregular, o jogador botafoguense voltaria a ganhar pouco depois, quando com o sucesso explodindo na cabeça, envolveu-se com motel, cocaína, e prostitutas (nada que me choque, mas para a opinião pública...).

    A fama respingou em mim nas duas ocasiões, com toneladas de brincadeiras. Mas nenhuma comparada a esta dos noruegueses: não é que resolveram homenagear o antigo -e fugaz- boleiro batizando a revista com o nome dele?

    Adiantei a fita e lembrei de viagem à Noruega para acompanhar a pesca e a produção do bacalhau. O cenário era de contos infantis.

    No arquipélago de Lofoten, já no Círculo Polar Ártico, barquinhos de madeira pontilhavam as águas com os tetos cobertos de neve fofa. Fora dos galpões de salga do bacalhau, a paisagem branca tinha varais de madeira de onde pendiam peixes secando (sem sal) ao ar livre até ficarem duros como pedra.

    Tudo enchia os olhos, a começar pela neve que teimava em cair mansamente, beliscando meu rosto a cada vez que eu erguia os olhos buscando ansiosamente... minha primeira aurora boreal.

    Era inverno, era frio, diziam que era época propícia para o espetáculo natural. Mas as nuvens cobriam o céu. A paisagem alva era o bastante para nos encher de beleza, mas sua fonte era uma barreira intransponível para as luzes do norte. E foi assim até minha partida.

    Na Noruega, sem ditadura e ainda sem "Josimar" (revista criada, agora sei, em 2009), não vi a aurora boreal, mas, em compensação, vi algo de cuja existência muitos duvidam: cabeça de bacalhau. Às pencas. E, melhor, vi (e comi) suas línguas e bochechas, das melhores iguarias do mundo.

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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