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    Josimar Melo

    A cafonice e os rasgos de realidade que um frenético city tour pode oferecer

    12/10/2017 02h00

    Alguém assistiu ao filme "If It's Tuesday, This Must Be Belgium", dirigido por Mel Stuart e lançado no longíquo ano de 1969?

    Eu só vi umas duas décadas depois, e sorri ao ver que sua inspiração foram as hordas de turistas que viajam o mundo meramente atrás do fetiche dos destinos. Pessoas que precisavam apenas "ticar" cidades, praias, monumentos, para fingir um dever cumprido, e ter uma fanfarronice para contar (e mostrar em slides, fotos ou posts) para as pessoas que desejam humilhar.

    Por isso o título no Brasil ("Enquanto Viverem as Ilusões") denota menos a ironia do título original (algo como "se é terça-feira, aqui tem que ser a Bélgica").

    Quem acha que a detestável febre de exibicionismo (geralmente artificial) popularizada no ambiente imbecilizante das redes sociais é nova, se engana. Só que antes dava mais trabalho e custava mais caro, e era por isso menos disseminada –embora não menos vulgar.

    Valentina Fraiz
    Ilustração

    O filme ajudou a estigmatizar uma instituição turística -as excursões e os city tours que circulam pelas cidades apenas avistando ao longe os pontos turísticos, com direito às fotos de praxe.

    No início da minha história de viajante eu olhava com desprezo essas piruetas tidas como cafonas narradas por alto-falante para uma plateia deslumbrada e confusa. Mas era porque tinha horror a viagens corridas, sem alvo.

    Minha fantasia era ficar em cada lugar o tempo suficiente para escolher o melhor café das redondezas, me tornar "íntimo" da padaria mais perfumada do bairro, e cumprimentar na esquina -com reconhecimento mútuo- o dono da mais variada banca de jornal (alguém ainda sabe o que é isso?).

    Se ocorria de poder ficar dez dias na Europa -o que daria para ticar dez cidades, dez países- eu não tinha dúvida: seria tempo dividido, se tanto, em duas cidades, e olhe lá.

    E com frequência, repetindo uma das cidades que me encantavam, e que passava a conhecer mais. Sendo assim, para que um superficial city tour, se eu podia ir conhecendo de verdade cada recanto que me interessava?

    Mas isso foram os tempos de turista amador, de fruir a viagem pelo prazer do conhecimento, da descoberta, dos reencontros.

    A vida me levou a uma certa rotina de viajante profissional. E se um jornalista vai a uma cidade cobrir um evento de gastronomia, com apenas três ou quatro dias ocupados pela frente, percebe que talvez nunca mais volte -mas não consegue se livrar daquela comichão de turista curioso. O que fazer?

    Bingo: jogo os preconceitos às favas e me entrego ao giro mecânico e à maquinal narração do city tour. Não deixa de ser uma forma de ter uma visão geral do território; e naqueles mais bem-feitos ganha-se também uma noção de história, de geopolítica, de costumes.

    Para quem gosta de livros, os maravilhosos guias da editora britânica Dorling Kindersley sempre foram uma sofisticada versão impressa dos city tours. Os mapas, as plantas dos edifícios e dos monumentos (com direito a cortes e elevações com detalhes internos) dão brilho aos textos descritivos. Uma viagem sem sair de casa.

    Mas é claro que nada substitui a umidade (ou secura) daquela selva ou daquele deserto, os aromas específicos que impregnam campos ou cidades, o furor do tráfego ou o lamento das orações de final de tarde que são típicos de certas cidades, o rugido do mar contra as encostas de um malecón enquanto as narinas estremecem com o ar respingado de salinidade.

    São memórias sensoriais que o mais perfeito dos guias impressos ou digitais não conseguirão imprimir na nossa memória de vida. Não que tenha muito mais qualidade aquela foto apressada batida nas poucas horas em que a horda de turistas ticou a cidade.

    Mas, na falta de tempo numa viagem de trabalho, do alto do ônibus do city tour, mesmo sem assimilar a experiência de vida naquele lugar, ao menos rasgos da realidade a gente ganha -e temperados por sons, cheiros e luminosidades que só mesmo estando lá para conhecer.

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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