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    Josimar Melo

    A amante argentina parecia presa fácil da rede de mentiras do brasileiro

    09/11/2017 02h00

    Em minha primeira vez em Bogotá estranhei o íntimo afeto com que a bela anfitriã me tratava: "cariño", "corazón", "luz de mi vida"... Só depois da terceira colombiana despejar-me "eres un sol", "mi dulce", "mi alma", "vida mía" –sem nenhum envolvimento sentimental (nem mesmo sexual!)– percebi que não sou eu, são elas, embora ceguinhas, talvez.

    E por acaso foi ali na Colômbia, onde tanto afeto sobra nos lábios femininos, que ouvi da amiga argentina Raquel Rosemberg uma frase de intensa dramaticidade, ainda que desferida com humor: depois de me elogiar para alguém, e tendo eu dito que era tudo exagero e mentira, ela retrucou, divertida, que "mentia porque gostava de mim".

    Suas palavras fortes naquele país de palavras doces lembrou-me certo mentiroso serial brasileiro, tão orgulhoso da sua habilidade em retorcer o mundo real que imodestamente acreditava não ser um vício ou distúrbio de caráter, mas uma arte.

    Exercitava seu prazer de mentir com sua amante argentina, que encontrava quase semanalmente em Buenos Aires. Considerava-a ingênua, presa fácil. Não era grande proeza, especialmente digna de orgulho, mantê-la no labirinto que tecia ao seu redor; mas era recompensado com a imensidão de seus carinhos submissos, a cada vez que, vindo do Rio de Janeiro, aterrissava no colo morno e tímido da linda morena.

    Zanone Fraissat/Folhapress
    Buenos Aires, capital da Argentina, à noite
    Buenos Aires, capital da Argentina, à noite

    Sua vida de solteiro (mas um dia casaremos) ambicioso (muito trabalho, pouco tempo livre) era aceita com abnegação enquanto ela sorvia a cantilena sobre o futuro promissor, submetia-se à sua agenda e ao seu ritmo, aceitava jamais ir com ele ao Rio para não perturbar sua dura rotina de trabalho.
    A cadeia de mentiras era tão sólida e bem urdida que ela não somente acreditava nele, como também se apaixonara.

    Uma única vez pareceu haver um distúrbio.

    Foi numa noite febril como podem ser febris as longas noites de Buenos Aires.

    Foi num restaurante em Palermo, quando mais uma vez a amante perguntou quando enfim chegaria o desfecho feliz.

    Foi quando ele percebeu, ao desenrolar mais um novelo de promessas, que mudara o semblante da moça. Até que ela tomou a palavra.

    Ela disse que quanto mais perdidamente se apaixonava, mais inquieta ficava com as incertezas do futuro e que por isso resolvera conhecê-lo melhor.

    E contou, com olhar fixo, num jorro de frieza patagônica, que por mil caminhos (inclusive uma viagem secreta ao Brasil) ela descobriu que tempo ele tinha de sobra, pois pouco trabalhava, já que tinha dinheiro de família –mais precisamente, dinheiro da família da mulher, com quem era casado havia cinco anos e criava dois filhos.

    Contou que urdiu um encontro com a mulher, cuja simpatia, beleza e confiança destroçaram seu coração. Há meses guardava para si tão dolorosas descobertas, ainda na estúpida esperança de que em algum momento ele deixasse de mentir.

    Agora, disse, convencera-se afinal de que ele não mudaria. Não deixaria a família. Não viveria jamais com ela. Ela, que cansara de esperar. E de tolerar mentiras. E de mentir a si mesma, fingindo acreditar.

    Aturdido, ele tentou uma débil ofensiva. Jogou sobre ela o peso das falsidades que foram a essência daquela relação. Então há meses ele é espionado? Toda a alegria dos últimos encontros foi dissimulada? Ela mente, mente a cada encontro?

    "Eu minto porque te amo", é o que ela diria em seguida.

    Mas aqui é preciso que se dê a voz à amante em sua própria língua. "Te amo", como o dizemos no Brasil, sugere doação, entrega à pessoa amada. Já em castelhano, a expressão "te quiero" tem um peso mais brutal (e talvez mais sincero): "querer" não é doar nada; é, pelo contrário, desejo imperativo de possuir.

    E foi assim, na sua língua, que disse a amante: "miento porque te quiero!". A entonação urgente, o impacto das sílabas finais rimaram com o estampido da arma que selou o fim daquele amor, que se esvaiu enquanto a vida abandonava o olhar embasbacado –mas finalmente verdadeiro– do amante brasileiro.

    josimar melo

    Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.

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