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    Juca Kfouri

    Legados e autoengano

    26/03/2015 02h00

    No centro de imprensa do Castelão, o colega americano com quem eu havia conversado antes da Copa, e feito críticas à bagunça vigente, se aproxima de braços abertos e sorriso nos lábios, exclamando: "Bendita hora em que a Copa veio para o Brasil!".

    Ele acabara de chegar de Manaus e estava extasiado com o estádio e com a facilidade de locomoção para chegar e sair dele, além de encantado com as populações ribeirinhas, "tão pobres, mas tão felizes".

    Foi então que travamos o seguinte diálogo:

    "Você sabe qual é a capacidade do estádio?", perguntei.

    "Sim, pouco mais de 42 mil pessoas", ele respondeu.

    "Pois é, e o Campeonato Amazonense todo reúne menos de 42 mil torcedores, com média inferior a 700 por jogo. Depois da Copa vai virar elefante branco", expliquei. E acrescentei: "Além do mais, você não teve problemas com o trânsito porque foi feriado em Manaus" –na verdade, ponto facultativo, mas simplifiquei.

    Entre surpreso, curioso e cínico, ele retrucou: "O estádio vai virar elefante branco? Problema de vocês, não meu!".

    Só então caiu a ficha que depois ficaria ainda mais clara: o mundo adorou a Copa e não é problema dele o que ficou como herança para os nativos.

    A Fifa acaba de dizer o mesmo ao repórter Jamil Chade depois de contabilizar a cifra recordista de R$ 8,4 bilhões de saldo com a "Copa das Copas": não quer nem saber se estádios como os de Manaus, Brasília, Cuiabá (que até fechado já esteve) e Natal estão às moscas, para não falar das confusões que envolvem o Maracanã e a Arena Corinthians –e nem mencionar que até o Pacaembu corre o risco de virar um elefantinho branquinho.

    Lembremos, ainda, que o ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, justificou, em agosto do ano passado, parte da recessão vivida pelo país em função da desindustrialização causada pelos feriados durante a Copa.

    Lembremos, também, que o prestidigitador ministro do Esporte, Aldo Rebelo, que prometia estádios repletos pós-Copa porque multiusos, agora esconde seu mutismo e o jogo na Ciência e Tecnologia.

    Tudo problema nosso, não dos gringos, é claro.

    A história se repete a menos de 500 dias dos Jogos Olímpicos no Rio.

    As autoridades mentem e douram a pílula. Acredita quem quer e há quem queira, feliz da vida.

    Não há atrasos, os gastos estão controlados, só falta alguém dizer que será a "Olimpíada das Olimpíadas" para termos mais uma piada pronta.

    Carlos Nuzman, o cartola que bateu o recorde de acúmulo de cargos na era olímpica moderna de mais de um século, ao juntar a presidência do COB com a do Rio-16, diante da constatação de que a Baía da Guanabara não será despoluída como um dos prometidos verdadeiros legados dos Jogos, saiu-se com mais uma frase de seu vocabulário sem pudor, ao repórter Silvio Barsetti: "As águas nos locais de competição são iguais para todos. Os melhores vão ganhar".

    Ou seja, para ele, no mar ou no esgoto, dá no mesmo.

    juca kfouri

    Tem mais de 40 anos de profissão. É formado em ciências sociais pela USP. Escreve às segundas, quintas e domingos.

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