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    Kim Kataguiri

    STF e o silêncio das tiranias

    12/07/2016 07h53

    O pedido que a Secretaria de Segurança do Supremo Tribunal Federal (STF) fez para a Polícia Federal investigar uma suposta "campanha difamatória" contra o presidente da corte, Ricardo Lewandowski, demonstra bem a postura, digamos, descompromissada com a letra da lei que ainda pode habitar aquele vetusto ambiente.

    De acordo com a secretaria, que assinou o pedido, os bonecos infláveis de Lewandowski e do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que foram levados a manifestações na Avenida Paulista, "representam grave ameaça à ordem pública e inaceitável atentado à credibilidade [...] do Poder Judiciário". A justificativa é assustadoramente rasa, especialmente quando levamos em consideração o fato de que partiu de uma repartição da mais alta corte do país.

    Não pretendo aqui fazer inferências que não posso provar. Logo, não direi que Lewandowski é a mão que balança o berço do autoritarismo. Mas uma coisa posso escrever com certeza: ele poderia ter deixado claro que discorda da iniciativa e não o fez. Nessas coisas, a omissão é uma escolha.

    A ação entra em contradição com a própria jurisprudência do STF. Os princípios constitucionais, com exceção do da dignidade da pessoa humana, têm o mesmo valor. Em determinados casos, porém, é preciso priorizar um em detrimento de outro.

    Quando o Supremo julgou a legalidade da Marcha da Maconha, os ministros decidiram, por unanimidade, que eventos daquela ordem não incidiam na Lei de Tóxicos (11.343/2006). O relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4274, Ayres Britto, justificou, em seu voto, que, hoje, vivemos "em uma sociedade de informação e de comunicação, em que o ser humano primeiro se informa para melhor se comunicar com seus semelhantes". O voto foi acompanhado por Lewandowski.

    Em outra ocasião, julgando a questão da publicação de biografias não autorizadas, a Corte também deu prioridade ao princípio da liberdade de expressão. A ministra que relatou a matéria, Carmen Lúcia, votou para que o Tribunal declarasse inexigível a autorização prévia para a publicação de biografias, afirmando que a Constituição proíbe "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística", e seu voto foi acompanhado por todos os seus colegas, inclusive Lewandowski, que fez questão de deixar absolutamente cristalino o seu repúdio à censura.
     
    Resta evidente, e foi esta a intenção dos autores do boneco, que a representação busca associar Lewandowski ao PT, questionando a sua isenção para presidir a Corte. Cobrar que o eminente ministro goste da crítica é pedir demais. Exigir que ele a tolere como atributo da democracia é o mínimo que se pode fazer.

    Esse regime, aliás, não existe apenas para abrigar as críticas justas. Também as injustas fazem parte do cardápio. Lewandowski certamente não pensa de si mesmo o que pensa o movimento que fez o Petralowski. E daí? Lula não se acha um Pixuleco. Janot não se vê como um Enganô. Até o diabo tem o direito de se considerar incompreendido. Imaginem os que não são diabos... A questão é saber se vamos optar ou não pela censura.

    De resto, quem disse que apenas um ministro considerado próximo do PT pode afrontar o consenso, o bom senso e o óbvio? O ministro Marco Aurélio Mello, aquele que, felizmente, quase sempre é voto vencido na Corte, obrigou, em maio deste ano, a Presidência da Câmara a acolher um pedido de impeachment contra o então vice-presidente, Michel Temer. Nossa Constituição não prevê impeachment para o vice-presidente da República. Além disso, acolher esse tipo de denúncia é prerrogativa exclusiva do presidente da Câmara dos Deputados, ou seja, o STF não tem nenhum poder de decisão sobre o assunto.

    A população tem o direito de reagir quando acha que a lei está sendo distorcida para afrouxar a pena de criminosos ou para punir inocentes. Tem esse direito ainda que não seja verdade!
    Todos reconhecemos a coragem daqueles que, nas ditaduras, gritam: "O rei está nu!". Nas democracias, como a que vivemos, as pessoas têm o direito de enxergar a nudez do rei, tendo a certeza de que seu olhar crítico atravessa muitas camadas de tecido e hipocrisia.

    Nas democracias, a toga protege essa liberdade. O resto é o silêncio das tiranias.

    É coordenador do Movimento Brasil Livre.

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