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    Laura Carvalho

    O poder da fraternidade

    19/11/2015 02h00

    Os ataques em Paris ilustram mais uma vez a questão da distribuição assimétrica do luto público. Os níveis diferenciados de comoção sugerem que a vida de um nigeriano vale menos que a de um sírio, que vale menos que a de um francês... Essa hierarquia, que está tão refletida nas reações da sociedade quanto na atenção conferida pela imprensa internacional, serviu para criar uma onda global de patrulha do luto alheio.

    O tema não é novo. Muitos já trataram da seletividade da fraternidade como aquilo que distingue direita e esquerda, identificando os últimos como mais capazes de se comover com o sofrimento dos que estão longe, social ou geograficamente.

    Coincidência ou não, o alvo dos terroristas em Paris não foi um local turístico ou um símbolo do poder financeiro ou militar europeu. O restaurante e a casa de shows estão situados em um bairro frequentado principalmente por parisienses progressistas. Justamente aqueles potencialmente mais propensos à solidariedade com os refugiados sírios e outras populações excluídas.

    Nesse sentido, os valores atacados em Paris não parecem ter sido os do imperialismo, do racismo ou da xenofobia, que já cresciam em alguns setores da população francesa e europeia. Tampouco parecem ter sido os da guerra e seus efeitos degradantes no Oriente Médio.

    Na verdade, como destacou a filósofa Judith Butler em seu livro "Frames of War", uma das formas de entender a guerra é justamente a partir da divisão das populações entre vidas passíveis de luto e vidas que passam a não ser.

    Um ataque que desperta o luto seletivo e o ódio em quem odeia menos, que estimula desejos de guerra em quem não os tinha, apenas faz crescer o fundamentalismo. De um lado e do outro.

    Durante o tiroteio da rua Fontaine-au-Roi, um americano perguntava, como se fossem coisas diferentes: gangsters ou Daesh? Quando interpretou os ataques não mais como um caso de polícia e declarou guerra ao Daesh –nome atribuído ao Estado Islâmico pelos que corretamente se recusam a conferir-lhe status de Estado–, o governo francês pode tê-lo legitimado, concedendo-lhe a grandeza almejada.

    Fora fazer disparar os preços das ações do setor de armamento, a utilização de armas de guerra para enfrentar um inimigo intangível pode alimentar um círculo vicioso sem fim, como alertara o ex-ministro das Relações Exteriores da França Dominique de Villepin, em entrevista, em 2014.

    O monstro fascista é filho da intolerância e alimenta-se do ódio. Para derrotá-lo, nenhuma resposta é melhor que as inspiradas naqueles outros valores franceses: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

    Convencido de que não podem lhe tirar esses valores, o articulista Luc Le Vaillant avisou no jornal "Libération" que, depois de chorar os mortos, recomeçaria tudo como antes.

    "Sentaremos novamente nos terraços do leste parisiense, nesses bairros mestiços e diversos [...] que são o que temos de melhor. [...] amanhã voltaremos a ouvir rock metal no Bataclan; a comer camarões no Petit Cambodge e a cortar as cabeças das teocracias, assim como cortamos as do absolutismo real que também fazia correr rios de sangue." A humanidade agradece.

    laura carvalho

    Laura Carvalho é professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC). Escreve às quintas-feiras.

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