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    Laura Carvalho

    Aviso aos navegantes

    24/03/2016 02h00

    Em meio à tempestade, parece ter sido construído um consenso entre alguns setores do empresariado, do mercado financeiro e do Congresso de que a queda da presidente Dilma Rousseff é o melhor caminho para chegarmos a águas mais calmas. Com Michel Temer na Presidência, a tão desejada estabilidade criaria as bases para a resolução das atuais crises política e econômica nos próximos anos.

    As condições econômicas favoráveis que caracterizaram a segunda metade dos anos 2000 permitiram ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva compatibilizar a manutenção da alta parcela da renda destinada ao 1% mais rico da população com a elevação do nível de emprego formal e dos salários e a redução da disparidade entre o salário mínimo e o salário médio da economia.

    O ganha-ganha garantiu ao ex-presidente a sua base de sustentação política, abrindo espaço para que uma parte maior do Orçamento público fosse destinada a programas sociais, aos gastos com saúde e educação e aos investimentos em infraestrutura.

    Desde 2011, a desaceleração econômica trouxe de volta um acirramento dos conflitos distributivos sobre a renda e o Orçamento público. A inflação de serviços, que crescia com os salários de trabalha- dores menos qualificados, deixou de ser compensada pelo menor custo dos produtos e insumos importados –que era fruto da valorização cambial– e passou a causar maior descontentamento.

    As sucessivas tentativas de resolver tais conflitos priorizando o lado mais influente da barganha, ora pela via da concessão cada vez mais ampla de desonerações fiscais aos empresários entre 2012 e 2014, ora pela via da elevação do desemprego, redução de salários e ameaça aos direitos constitucionais, desde 2015, mostraram-se fracassadas na estabilização da economia e na construção de uma base de sustentação política para o governo Dilma.

    Ignorando tais evidências, Temer apresentou no fim de outubro um esboço de seu programa de governo no documento intitulado "Uma Ponte para o Futuro", que foi elaborado por uma fundação do PMDB com a colaboração do ex-ministro Delfim Netto. O texto, entre outros itens, afasta a hipótese da elevação de impostos como caminho para o ajuste das contas públicas, sugerindo, ao contrário, acabar com vinculações constitucionais para os gastos com saúde e educação e com a indexação de benefícios previdenciários ao salário mínimo.

    "Nossa crise é grave e tem muitas causas. Para superá-la, será necessário um amplo esforço legislativo, que remova distorções acumuladas e propicie as bases para um funcionamento virtuoso do Estado. Isso significará enfrentar interesses organizados e fortes, quase sempre bem representados na arena política", propõe.

    Pelo teor do programa, os interesses organizados e fortes que serão enfrentados em um eventual governo Temer não são os dos financiadores de campanhas eleitorais, que já capitaneiam seu barco, mas sim os dos trabalhadores e movimentos sociais –apoiadores ou críticos ao governo– que foram às ruas na sexta-feira (18).

    Não há registro histórico de um governo que, mesmo contando com a legitimidade conferida pelo voto, tenha conseguido, em meio a condições econômicas tão desfavoráveis e agravadas por essas escolhas, garantir a estabilidade e a paz social por essa via sem o uso de repressão crescente. Esses navegantes parecem, entretanto, decididos a pescar em águas turvas.

    laura carvalho

    Laura Carvalho é professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC). Escreve às quintas-feiras.

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