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    Laura Carvalho

    Os escafandristas virão

    31/03/2016 02h00

    No futuro, "sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, [...] vestígios de estranha civilização". E quem sabe então não encontrarão, em meio à montanha de gritos que hoje associam a derrubada da presidente Dilma Rousseff ao escândalo de corrupção na Petrobras ou às pedaladas fiscais, esta humilde coluna de jornal ou, melhor ainda, o documento em que o presidente da Câmara explicou sua decisão de aceitar o pedido de impeachment, em 2/12/2015 –o dia em que os deputados do PT anunciaram que votariam pela continuidade de seu processo de cassação no Conselho de Ética.

    "Não se pode permitir a abertura de um processo tão grave [...] com base em mera suposição de que a presidente da República tenha sido conivente com atos de corrupção."

    Já sobre as pedaladas, Eduardo Cunha alerta: "Os fatos e os atos supostamente praticados pela denunciada em relação a essa questão são anteriores ao atual mandato".

    Cunha concentra-se, portanto, em outra denúncia: a de que a presidente assinou em 2015 seis decretos de abertura de créditos suplementares cujo valor seria incompatível com o cumprimento da meta fiscal.

    Talvez cause estranheza aos futuros estudiosos que, em 2001 e 2009, a emissão de decretos de crédito suplementar em meio a um quadro fiscal deteriorado não tenha provocado espanto. A denúncia só apareceu no segundo pedido de impeachment dos advogados Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reale Júnior e outros, realizado em 15/10/2015.

    Hoje a suposta base legal do golpe parece importar pouco, mas os escafandristas do futuro quiçá estarão interessados em entender do que se trata. Como o Orçamento é elaborado quase meio ano antes da sua execução, caso uma determinada ação orçamentária tenha obtido autorização inferior à necessária, ministérios e demais Poderes podem solicitar a abertura de créditos suplementares.

    Os decretos de 2015 totalizaram R$ 95 bilhões, dos quais R$ 92,5 bilhões foram compensados com o cancelamento de outras dotações orçamentárias e R$ 708 milhões referiram-se a despesas financeiras que não entram no cálculo do resultado primário, de modo que a denúncia aplica-se apenas ao valor restante, de R$ 1,8 bilhão. Desse total, cerca de 70% destinaram-se ao Ministério da Educação para itens como Ciência Sem Fronteiras, universidades federais e hospitais de ensino.

    Esses decretos não ampliaram, no entanto, o total de despesas que poderia ser executado por cada órgão. O que os decretos fizeram foi possibilitar a realocação interna de recurso entre rubricas, já que o limite total para a execução de cada órgão foi definido pelos decretos de contingenciamento. O montante contingenciado em 2015 (R$ 79,8 bilhões), aliás, foi o maior desde o início da Lei de Responsabilidade Fiscal.

    Aos futuros visitantes de um Brasil submerso peço que evitem confundir os bem-intencionados na luta contra a corrupção com aqueles que buscavam assaltar o poder sob qualquer pretexto para abafar investigações ou para garantir que os trabalhadores continuassem a pagar o pato da crise econômica. De todo modo, fica o alerta: "Os escafandristas virão explorar sua casa. Seu quarto, suas coisas. Sua alma, desvãos".

    laura carvalho

    Laura Carvalho é professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC). Escreve às quintas-feiras.

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