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    Laura Carvalho

    Muito além da estagnação

    23/06/2016 02h00

    Duas manchetes desta Folha de segunda-feira (20) chamaram a atenção para os efeitos da crise econômica sobre a desigualdade de renda no país. Os números apresentados no estudo do professor Rodolfo Hoffmann sugerem que, desde o início de 2015, a escalada do desemprego foi responsável por uma forte elevação da pobreza.

    A segunda reportagem destaca que a mesma recessão não impediu, no entanto, a elevação da renda dos 10% mais ricos da população. O desemprego aumentou sobretudo entre os trabalhadores que tinham menos qualificação, ou seja, nas camadas inferiores da distribuição de renda.

    É verdade que nem toda expansão econômica vem acompanhada de redução das desigualdades, mas também é verdade que nem toda crise é tão mal distribuída. O círculo vicioso atual parece uma imagem no espelho do processo de crescimento econômico brasileiro que vigorou entre 2005 e 2010, cuja natureza deve ser mais bem compreendida, caso o objetivo ainda seja impedir sua completa reversão.

    O ensaio intitulado "Além da estagnação", escrito no início dos anos 1970 pela mestra Maria da Conceição Tavares e pelo hoje chanceler provisório José Serra, introduziu importante diagnóstico sobre o processo de crescimento com alta das desigualdades que caracterizou o chamado milagre econômico brasileiro.

    A ideia central dos autores é que o aumento da concentração de renda durante os anos da ditadura militar teria levado a uma expansão do consumo por produtos então considerados de luxo, como automóveis e eletrodomésticos, que por sua vez demandavam uma mão de obra mais qualificada. O processo teria contribuído, assim, para concentrar ainda mais a renda no país, na medida em que aumentou a diferença entre os salários mais altos e os mais baixos.

    Um processo do mesmo tipo pode ter caracterizado o período entre 2005 e 2010, desta vez com a redução das desigualdades e o crescimento maior reforçando-se mutuamente. A valorização mais acelerada do salário mínimo e a inclusão no mercado de consumo de uma parte significativa da população brasileira teriam levado à expansão de setores cuja produção demanda uma mão de obra menos qualificada, essencialmente de serviços.

    Ao reforçar a redução das desigualdades salariais pelo aumento mais acelerado da renda dos trabalhadores com menor grau de escolaridade, tais alterações no padrão de consumo e na estrutura produtiva colaboraram com o círculo virtuoso de dinamismo do mercado interno e do mercado de trabalho que vigorou até 2010, em uma versão às avessas do milagre econômico. Esse diagnóstico foi bem elaborado pelo professor Fernando Rugitsky no artigo intitulado "Milagre, miragem, antimilagre", publicado na mais recente edição da revista "Fevereiro".

    A continuidade desse processo, bem como sua compatibilidade com o controle da inflação, o equilíbrio das contas públicas e a ausência de restrição externa –até então facilitada pelo cenário externo favorável–, dependia de políticas mais efetivas de elevação da produtividade do trabalho e de diversificação da estrutura produtiva. Dependia também do aprofundamento do processo de redistribuição de renda, que nunca chegou ao topo.

    Infelizmente, o caminho seguido não foi o de dar solidez aos pilares do modelo anterior, com maiores investimentos em infraestrutura física, melhoras na política educacional, uma reforma tributária progressiva e simplificadora ou uma política industrial estratégica. Nem a partir de 2011 e menos ainda a partir de 2015. Em 2016, com o tal caminho já fora do mapa e diante dos que continuam à espera de um milagre, Mario Quintana já se espantava: "Milagre é acreditarem nisso tudo!".

    laura carvalho

    Laura Carvalho é professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC). Escreve às quintas-feiras.

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