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    Leandro Narloch

    No século 17, traficantes baianos causaram inflação no Congo

    17/05/2017 11h35

    É impossível não se deslumbrar com a cena. Traficantes de escravos chegam a Boipeba, no sul da Bahia, e encontram montes de dinheiro pela praia. As moedas vêm com as ondas e se espalham pela areia; basta coletá-las, encher os porões navio com elas e declarar: "ricos, estamos ricos!".

    A moeda em questão era o cauri, uma concha de praia também chamado de zimbo ou búzio (ainda que o búzio seja maior e um pouco diferente). O cauri não valia nada no Brasil, mas em Angola e na Costa dos Escravos (atuais Benim, Togo e Nigéria) era a moeda mais aceita pelos comerciantes.

    Logo nas primeiras viagens à Ásia, navegadores portugueses adquiriam cauris nas Maldivas para revendê-los na África. No século 17, descobriu-se que as praias de Ilhéus, Porto Seguro e Boipeba estavam cheias deles. Os mercadores fizeram a festa. Havia por lá "muito zimbo, dinheiro de Angola, que são uns buizinhos mui miúdos de que levam pipas cheias e trazem por elas navios de escravos", escreveu frei Vicente do Salvador em 1627.

    Como um BNDES colonial, as conchas da Bahia financiaram obras na África. Em 1618, o português Baltazar Rabelo de Aragão escreveu ao reino português dizendo que seria fácil construir um forte em Angola -bastaria trazer as conchas do Brasil para financiá-lo: "Os do Brasil trazem muita quantidade [de cauris] que vendem para o reino do Congo e Pinda, e assim custará muito pouco o gasto da dita fortaleza".

    Conchas têm muitas características necessárias a moedas. São duráveis e leves, têm tamanho homogêneo (podem ser multiplicadas e trocadas por peso) e na época eram difíceis de se falsificar. O principal é que, como ouro, cauris têm oferta limitada pela natureza. Ou tinham, até os baianos os descobrirem nas praias.

    Tantas conchas chegaram ao Congo-Angola que o reino passou a ter um problema de excesso de oferta monetária e sua costumeira consequência: a inflação.

    "O crescimento das exportações de zimbo chegou a níveis tão altos que o cofo (medida padrão do zimbo luandense) registrou uma desvalorização inflacionária durante todo o século 17 e 18, até perder quase todo seu valor comercial", conta o historiador Ronaldo Lima da Cruz, num estudo sobre os cauris.

    O rei do Congo deu uma de Henrique Meirelles e adotou medidas anti-inflacionárias. Proibiu a importação de cauris; a Igreja prometeu excomungar quem levasse mais moedas para aquele reino. Mas pouca gente obedeceu, e o mercado continuou.

    Apesar da desvalorização, as conchas serviram como moedas até o século 19 em diversas regiões da África. A taxa de câmbio no Daomé (atual Benim) era de 2 mil cauris por dólar da época (o equivalente a 32 dólares hoje). O capitão inglês Frederick Forbes, que visitou aquele reino em 1849, se espantou ao descobrir que precisava contratar diversos carregadores de dinheiro - uma pessoa conseguia carregar o equivalente a apenas quatro dólares. Como em épocas de hiperinflação, era preciso juntar sacos de dinheiro para pagar um simples almoço.

    leandro narloch

    Jornalista, mestre em filosofia e autor do "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", entre outros. Escreve às quartas.

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