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    Leandro Narloch

    'Fake news' são arma política desde os brioches de Maria Antonieta

    06/12/2017 10h26

    Era uma vez o imperador romano que incendiou a própria cidade, a rainha fútil o suficiente para sugerir dar os brioches do palácio à multidão faminta, o presidente que tentou elevar a jornada de trabalho para 12 horas por dia e o prefeito que espantava mendigos com jatos de água (ou lhes arrancava os cobertores).

    A internet deu impulso às "fake news", mas elas não são novidade. Muito antes dos grupos do WhatsApp, mentiras revoltantes divulgadas em livros, enciclopédias, panfletos e jornais tradicionais mancharam reputações, derrubaram regimes e formaram boa parte do que sabemos sobre a história do mundo.

    A imagem deliciosa de Nero tocando harpa enquanto Roma queima é provavelmente intriga da oposição. Tácito e Suetônio, principais fontes sobre Nero, eram senadores descontentes com o fim da República Romana, por isso não foram generosos com a primeira dinastia de imperadores. Como Tácito contou que Nero culpou os cristãos pelo incêndio da cidade, a Igreja, séculos depois, tampouco deixou barato para o imperador.

    Os iluministas levaram um pouco de claridade às crenças medievais? Nem tanto. Também difundiram diversos mitos sobre a Igreja e a Idade Média em vigor ainda hoje. Livros didáticos repetem a história de que noivas camponesas eram obrigadas a passar a primeira noite com o senhor feudal (o "direito de pernada").

    Reuters
    Termo 'fake news' é muito usado pelo presidente norte-americano Donald Trump e passou a ser adotado por governantes de outros países, como a primeira-ministra Theresa May
    Termo 'fake news' é muito usado por Trump e passou a ser adotado por governantes de outros países

    Essa história é tão mentirosa quanto a versão de Voltaire sobre Galileu, que teria sido torturado "nas masmorras da Inquisição". O astrônomo, na verdade, se hospedou em aposentos oficiais durante seu julgamento e era velho demais para ser torturado. Tinha cientistas e acadêmicos entre seus principais inimigos; bispos entre amigos e apoiadores.

    Na Revolução Francesa, boatos foram o fermento do ódio. Naquela época, como hoje, a popularização da comunicação propiciou um banquete de histórias revoltantes. A rainha Maria Antonieta foi o alvo mais comum dessa "literatura da raiva". Panfletos baratos com tiragens de 20 mil, 30 mil cópias divulgaram a lenda dos brioches e retrataram a rainha como uma mãe negligente, mesquinha, depravada.

    Os Últimos Soldados da Guerra Fria
    Fernando Morais
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    Mas tiranos também criam suas mentiras. Fidel Castro, diante da escassez de batatas em Cuba, acusou os Estados Unidos de jogarem larvas de avião para sabotar as plantações. O escritor Fernando Morais incluiu sem constrangimento essa notícia falsa no livro "Os Últimos Soldados da Guerra Fria".

    Caso em que a ficção inspira a realidade, essa narrativa já tinha sido denunciada décadas antes por George Orwell. Em "A Revolução dos Bichos", os líderes da fazenda, diante da escassez de alimentos, acusam o porco Bola-de-Neve de jogar sementes de joio entre as de trigo para sabotar a plantação.

    O diabo é que as mentiras funcionam. Aguçam nossa tentação inata para a "agressão moralista", a violência em nome da justiça. Se a história é repugnante e bem construída, convence mais que estatísticas e argumentos. Por isso as "fake news" existem há tanto tempo –e não devem nos abandonar tão cedo.

    leandro narloch

    Jornalista, mestre em filosofia e autor do "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", entre outros. Escreve às quartas.

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