• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 01:44:29 -03
    Leão Serva

    Meu dia de Senado

    02/06/2014 02h00

    No último dia 20, terça-feira, fui convidado a depor em uma audiência pública do Senado Federal sobre Telefonia Celular. Decidi ir porque o convite previa que eu cumpriria ali o papel de representar os consumidores, como você e eu, frente a outros depoentes: presidentes das empresas de telefonia e de seu sindicato, o presidente da Agência de Telecomunicações, a Anatel. Além desses representantes do establishment, havia ainda duas autoridades de Sergipe, que conseguiram mudar a qualidade da atenção das telefônicas no Estado: uma promotora do direito do consumidor e um deputado estadual que decidiu quebrar a hierarquia federativa e convocar uma CPI estadual sobre a telefonia celular.

    A audiência foi longa, porque as empresas, seu sindicato e a Anatel utilizaram-se de um recurso ardiloso, primeira lição do "manejo de crises", que é falar até o limite do tempo sobre temas sem importância, para não deixar espaço às perguntas espinhosas da plateia, composta de senadores.

    Em meu depoimento, falei da coluna que escrevi para a Folha em março, que motivou o convite. Nela, eu narrava a impossibilidade de falar com a Anatel. Minhas chamadas telefônicas frustradas mostraram que a eficiência da agência em atender seus reclamantes era naquele momento de 0,86%.

    Além disso, procurei explicar aos senadores como a mensagem que corriqueiramente ouvimos no celular ao tentar ligar para telefones conhecidos, que diz coisas como "o número chamado não existe", dissimula um problema muito maior, de congestionamento do sistema. A mensagem amalucada esconde um defeito das empresas que deveria resultar em multas.

    Mas falei também de outras afrontas ao direito do consumidor. Uma delas que penso ser das mais gritantes, é a cobrança por serviços não prestados. Quando uma pessoa vai ao supermercado e pede um saco de açúcar, por exemplo, caso o mercado não tenha um, ele não vai pagar pelo açúcar, né? Mas quando se trata de internet, o usuário brasileiro de celular paga pelo que pede e não recebe...

    Quando tentamos ver uma página ou obter um e-mail, nosso celular ou computador emite uma "requisição" daqueles dados. Esse sinal é respondido pelo outro servidor/computador com o envio do que foi pedido. Se a internet funciona mal, o usuário não consegue acessar dados e nem receber um e-mail... mas vai ser debitado em sua conta porque sua requisição ocupou a linha enquanto tentava receber os dados.

    Outro caso gritante de problema no relacionamento entre as operadoras e os consumidores é o caso da venda de "Pacote de acesso ilimitado a internet" com limites. Por muito tempo, nos últimos anos, as empresas telefônicas fizeram intensas campanhas publicitárias oferecendo acesso de dados ilimitado a preços fixos. Em verdade, quem lia o contrato via, nas pequenas letras ao final da segunda página, logo acima da assinatura, que eram "ilimitados até 2 Gigabites ou 4 Gigabites etc." e que a seu critério a operadora poderia suspender o acesso ou torná-lo mais lento após o uso dos 'bites' contratados.

    A agência me informou que a limitação ao acesso acima do limite de 2G ou 4G é um direito da operadora, que está em contrato e que portanto estava correto o procedimento. Eu lhe disse, então, que era de se concluir que suas propagandas eram enganosas, argumento que foi rebatido com um simplório "a Anatel não controla a publicidade das operadoras..." e que eu deveria procurar o Procon. Mas esses departamentos servem para atender consumidores de indústrias não controladas, que não são monopólios de atividades estatizadas concedidos à iniciativa privada, para os quais foram criadas as agências controladoras
    Pude concluir que, segundo a agência, não é sua competência analisar a publicidade das telefônicas; está averiguando há meses a dissimulação do congestionamento através de mensagens estranhas, mas sem conclusão; e, por fim, não soluciona o absoluto congestionamento da sua central de atendimento, que impede o acesso a algo como 99% dos reclamantes.

    Se o índice de reclamações feitas à Anatel é um dos mecanismos usados pela agência para avaliar o desenvolvimento das empresas do setor, e deixa de atender a 99% dos telefonemas a ela direcionados, evidentemente o retrato da performance das operadoras está profundamente adulterado...

    Bem, as sementes foram lançadas. Não é possível saber se os senadores vão fazer algo com aquilo que foi dito. Mas se quiserem, têm um bom roteiro de questões para investigar sobre a qualidade do relacionamento entre os grandes conglomerados telefônicos e os seus clientes. Questões que em outros países seriam investigadas por agências controladoras, como as que inspiraram a Anatel, no Brasil. Mas aqui a nossa está com o telefone sempre ocupado...

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024