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    Leão Serva

    A vida sem videolocadoras

    18/08/2014 03h00

    A videolocadora do bairro está para fechar. Há décadas instalada na simpática praça Vilaboim, em Higienópolis, aquele Sésamo sempre aberto e abarrotado de cultura, que fornece enredo para amor e solidão e ajuda a criar filhos ou entreter noites, cujos atendentes indicam filmes que o cliente quer ver e não sabe, tem na fachada um anúncio: "Passo o ponto".

    A loja surgiu como videoclube, depois as fitas cassete foram sendo trocadas por DVDs e, nos últimos tempos, esses discos cederam espaço para o formato blu-ray. Em todas as plataformas, porém, os filmes eram apenas álibi de um lugar para "passear sentimentos, ternos ou desesperados", como diria o poeta. O cinema, afinal, trata das questões fundamentais da condição humana, como vida, amor e morte.

    A pequena locadora não aguentou a concorrência dos sistemas "on demand" (Netflix, Now, Apple TV etc), que oferecem grande acervo de filmes na forma de arquivos digitais. Em toda a cidade estão cerrando as portas os últimos pontos desse gênero que surgiu nos anos 1980 e sobreviveu a sucessivas trocas de tecnologia e à concorrência de grandes redes, que feneceram antes.

    O fim desse negócio está previsto faz tempo. Em meu livro "Babel..." (Mandarim, 1997), no capítulo "Deus, o que será dos videoclubes?", eu já apontava que as locadoras estavam com os dias contados, ameaçadas pela tecnologia "on demand". Anos depois, quando a Blockbuster fechou, ficou claro que aquele comércio já não atraía megainvestidores. No entanto, os serviços on-line demoraram duas décadas para se tornar competitivos.

    Hoje, o aluguel de um filme on-line tem preço igual ou menor que a diária das locadoras (quando não é de graça); já os serviços com assinatura mensal
    custam em torno de duas locações de um DVD.

    Outras atividades e profissões viveram processos semelhantes. Ascensoristas são uma raridade; cobradores de ônibus sobrevivem por pressão sindical, encarecendo a passagem de ônibus nas cidades. No início dos anos 1990, os britânicos discutiam a redução do número de leiteiros. As famílias passavam a comprar leite mais barato em supermercados, em embalagens de papelão, deixando de receber garrafas de vidro na soleira de suas portas. Mas, além de entregar leite, os leiteiros prestavam um serviço comunitário: conversar com os idosos solitários, observar quando casas são arrombadas... Hoje, os leiteiros voltaram a crescer, oferecendo produtos premium.

    Pesquisas mostram que muitos leitores vão a livrarias escolher obras. Depois, buscam na internet e compram a melhor oferta. Se isso é verdade, a morte das livrarias ameaça a indústria editorial e até os websites, que asfixiam as lojas físicas. Há quem defenda que Amazon.com e outros serviços de e-commerce precisam manter vivas as lojas tradicionais, como mostruários para o leitor fazer a cabeça.

    Algo semelhante pode acontecer com as locadoras. A falta de lojas reduz o universo de escolha aos filmes de maior repercussão ou publicidade. O resultado pode ser a homogeneização do gosto. Nesse sentido, produtoras de cinema talvez precisem da sobrevivência das lojas físicas para melhorar a qualidade da compra on-line.

    No entanto, mesmo a solução desse drama da indústria não resolve a angústia mais urgente: como será a vida sem locadoras, esse espaço público de afeto que se esvai?

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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